A sua débil saúde valia como motivo bastante para não se meter naquela aventura de “ir viver” para a Guiné-Bissau a que meteu ombros em 2004. A idade, mesmo que a saúde não inspirasse cuidados, também o devia ter demovido, era o que pensavam os seus amigos. Tinha 67 anos. Depois, não se podia esquecer de um registo do seu passado de militar: andara anos por aquela mesma terra combatendo em nome de uma ordem que entretanto se desmoronara, substituída por outra que agora mandava – justamente aquela contra a qual havia lutado. Quem lhe podia garantir que não seria mal recebido, vivas que ainda estivessem memórias do bravo combate que dera ao PAIGC?

Não era como uma aventura que Alpoim Calvão, o sujeito desta história, encarava aquela decisão de “voltar à Guiné”. Ao contrário, era “com naturalidade”. As suas ligações ao antigo Ultramar, primeiro Timor, para onde fora levado pela família, ainda criança de tenra idade, depois Moçambique, que só deixara findo o liceu para vir frequentar a Escola do Exército, em Lisboa; ou os anos a fio que passara na Guiné, esses como combatente, haviam dado lugar a laços que nunca renegara. Era deles que vinham os sentimentos de dever e afeição que em 2004 o levaram a voltar à Guiné. Esses, talvez só ele os entendesse, pelo menos na sua inteireza.

A especialidade a que foi destinado na Escola Naval, para onde entretanto transitara, vindo da Escola do Exército, fora a de mergulhador sapador, e de submarinos, nenhuma delas com qualquer aplicação no tipo de conflito que em 1961 viria a eclodir em Angola, e mais tarde se estende a Moçambique e à Guiné. Mas como acha que aquilo também é com ele, apresenta-se ao ministro da Marinha, Reboredo e Silva, dando-lhe conta do que lhe vai na alma e pedindo que defira a sua pretensão de frequentar o curso de Fuzileiros Navais – estes sim, com missões ajustadas à guerra subversiva.

Na Guiné do DF 21

Entre as datas que faziam parte da sua memória profunda estava a de 4 de Outubro de 1963, aquela em que desembarcou no cais de Pidjiquiti, Bissau, como capitão-tenente fuzileiro naval. Não fora despachado por escala; fora como voluntário. A tarefa que lhe é atribuída é a de comandante do Destacamento de Fuzileiros da Guiné, o DF 21, que o ligaria para o resto da vida a Canturé, uma localidade situada nos meandros do Geba, onde a unidade estava aquartelada.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os fuzileiros do DF 21 são muitos deles nativos da Guiné, com os quais Alpoim Calvão foi criando laços de camaradagem e amizade. É nesses laços que mergulha o sentido de dever que o fez voltar à Guiné. O que vai sabendo acerca desses homens, nos anos a seguir à independência, é que são humilhados e marginalizados; outros fugiram e aos mais azarados aconteceu ainda pior. É o que verifica, in loco, quando foi pela primeira vez à Guiné-Bissau em 1985 – uma viagem que gerou celeuma interna e externa e por isso não foi repetida nos anos seguintes.

Entre as vozes externas indignadas com aquele atrevimento de voltar a “pôr os pés” no território, conta-se pelo menos um “capitão de Abril”. Entre os quadros do PAIGC que também não olham com bons olhos para aquele reaparecimento de Alpoim Calvão não se conta, porém, o de Nino Vieira. É agora presidente da Guiné-Bissau e foi com ele que travara alguns dos seus mais duros combates, entre os quais o da ilha de Como. A paz dos bravos (dos bravos de verdade) tinha coisas assim: em 2004 Nino Vieira viria mesmo a recebê-lo e a manter contacto com ele.

Alpoim Calvão no seu regresso à Guiné, depois de 2004, com antigos combatentes guineenses das forças portuguesas.
.

A aura que Alpoim Calvão ali deixara como militar é a de um homem a cuja coragem física, inata nele, se juntou a argúcia e o engenho próprios de quem olhou para as características daquele guerra com olhos de ver, tirou as devidas conclusões e agiu em conformidade. Da sua história de combatente na Guiné, a operação “Mar Verde” é o feito que avulta. Pela mestria com que a operação foi planeada, preparada e executada. Os seus principais méritos militares: a surpresa total do assalto a Conacri, o controlo da cidade e a retirada da força em segurança depois de cumpridos os seus objectivos.

A valentia que geralmente era reconhecida a Alpoim Calvão, juntavam-se predicados como os de homem culto, politicamente perspicaz e com um gosto especial pela informação, que acompanha e sobre a qual reflecte. Foi com certeza por isso que nos derradeiros anos do regime, já em Lisboa, primeiro como comandante da Escola de Fuzileiros, depois como director do Porto de Lisboa, lhe foram confiadas tarefas como a de elaborar doutrina para a guerra anti-subversiva ou “colher e recortar” informação relacionada com a actividade geral dos movimentos de guerrilha.

A decisão de voltar

A vontade de voltar e a noção do dever que associou a isso foram produto de uma viagem que no início daquele mesmo ano de 2004 efectuara à Guiné-Bissau, a convite de uma TV espanhola, que solicitara os seus préstimos como “consultor” de um documentário sobre o país (o script contemplava incursões ao passado da administração portuguesa). Deu-se então conta, em toda a sua crueza, das más condições em que viviam os antigos combatentes das forças portuguesas na Guiné – uma triste sina pela qual responsabilizava a maneira desonrosa como Portugal se desobrigara do seu passado.

Por esse tempo, 2004, constata também que o ambiente meio hostil que encontrara em Bissau dez anos antes já não é o mesmo. Está melhor. Foi curto o passo entre a constatação de tal realidade e o “click”, que entretanto passou à prática e foi ganhando forma, de voltar à Guiné com planos para investir uns dinheiros que tem (300.000 euros) na criação de duas empresas, Licaju e a Licata, nas quais emprega muitos antigos militares. Pelo meio criou uma Liga dos Combatentes das Forças Especiais Portuguesas da Guiné, oficialmente reconhecida.

Alpoim Calvão depois do seu regresso definitivo a Portugal, finda a “aventura” de “ir viver” para a Guiné-Bissau em 2004.
.

Não foram muitos os anos que ali permaneceu. Os seus problemas cardíacos, para se prevenir dos quais lhe tinham implantado um desfibrilhador, obrigavam-no a atender a uma espécie de diktact do seu médico: era forçoso voltar a Portugal de vez. Morreu em 2014, com 77 anos. De certeza consolado por aqueles anos passados numa terra que lhe alimentava o espírito e lhe corria no sangue. Mais ainda, pelo amparo que levara a dezenas de antigos combatentes a que dera emprego e pelo respeito com que antigos adversários haviam passado a olhá-lo.

[Já saiu: pode ouvir o sexto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio, aqui o quarto e aqui o quinto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]