A esquerda portuguesa não se caracteriza pela lucidez. Quase toda ela. É que não percebe exactamente qual é o seu adversário político e o que a população dela hoje espera. Vai daí necessita de inventar inimigos e socorre-se de chavões passados absolutamente deslocados no tempo a que se habituou durante décadas mas que já não existem há muito. Trata-se de uma questão de sobrevivência. Refiro-me, claro está, ao famigerado «fascismo».
Considera efectivamente que o adversário é o «fascismo», papão agitado durante esta campanha eleitoral, sem lhe passar pela iluminada cabeça que o dito «fascismo» foi o resultado de circunstâncias históricas especiais que se não repetem nem podem repetir porque a conjuntura actual de crise das democracias representativas no quadro europeu não tem nada de semelhante ao que se verificou na Europa a seguir à revolução de Outubro de 1917 nem as soluções possíveis se podem reivindicar de qualquer lição a aprender com o que se passou. Como diz Michel Onfray o fascismo hoje é introuvable.
Constatar esta realidade evidente é excessivo para as possibilidades intelectuais da esquerda nacional.
De facto não é o fascismo que está de regresso e o argumento ad hitlerum só cabe nos raciocínios escassos dos intelectuais de serviço e dos vis e ignorantes comentadores políticos televisivos. O problema com que se deve defrontar a esquerda é a crise das democracias representativas europeias e essa nada tem que ver com o fascismo. Ninguém na direita quer resolver a crise através da ilegalização de partidos políticos, do retrocesso nos direitos fundamentais, da concentração dos poderes estatais, da divisão social entre bons e maus, da marginalização dos diferentes, da ortodoxia ideológica própria do totalitarismo e do racismo. Nada disso. Era bom que a esquerda portuguesa entendesse que ao agitar estes chavões erra o alvo. Aquilo a que chama hoje homem de direita não é fascista; é hedonista, individualista, pragmático, cosmopolita, consumista, racional e em larga medida incréu, como é característico do cidadão unidimensional das democracias capitalistas avançadas. Nada tem a ver com o fascista de antanho, é mesmo o seu contrário. Mas isso a esquerda nacional que nunca leu Tocqueville (nem sabe quem foi) nunca compreenderá. A esquerda portuguesa nunca saiu do espírito insurreccional de 1974 e de 1975 e as lições que aprendeu ficaram por aí. Está presa ao passado porque precisa dele e não respira fora dele. Até parece que tem saudades dos fantasmas da pide, da guerra colonial, dos presos políticos e das perseguições, da ditadura, da discriminação contra os diferentes, dos tribunais colectivos e, como há muito tempo que já nada disso existe, ficciona o seu sebastiânico e redentor regresso. A direito portuguesa já se desembaraçou do fascismo há muito mais de cinquenta anos e a actual juventude nem sabe mesmo o que isso foi. A esquerda é que o invoca a esmo como se fora uma ladainha em latim. É natural; de pequena criada naquilo, não conhece nem vê outra luz.
Ora hoje a questão principal é a da reconstrução da democracia política na Europa em geral e no nosso país em especial. A solução da direita, de toda ela, é o revigoramento da sociedade civil através de uma redefinição em baixa do papel do estado nas democracias avançadas do nosso tempo. Isto passa pela desideologização da constituição e pela atenuação da sua rigidez, pelo enfraquecimento do papel do estado a todos os níveis, pela reformulação das instituições europeias reforçando ao nível interno e europeu a legitimidade democrática das instituições, designadamente das que representam o nosso país junto dos órgãos europeus, pelo revigorar das instituições de democracia directa e participativa, designadamente do referendo, pela personalização dos círculos eleitorais, pelo fim do monopólio dos partidos políticos como intérpretes da opinião pública e last but not least, pelo fim do terrorismo fiscal sobre a classe média que assola o nosso país e pelo combate ao facciosismo do ensino e ao condicionamento ideológico da cabeça dos alunos.
Ora, a esquerda portuguesa nem quer ouvir falar disto. Não está na sua zona de conforto, como se diz agora. Como está habituada a pensar dentro de um colete de forças vê o fascismo em toda a parte pela simples razão que necessita dele para sobreviver. Qualquer voz dissonante do totalitarismo esquerdista é «fascista». Se o combate político sair das trincheiras insalubres da guerra civil ideológica de que se alimenta há quase cem anos, fica como o peixe fora de água. A esquerda portuguesa vive dos pressupostos ideológicos de há quase cem anos aprendidos com Estaline e Dimitrov e postos a circular pelos comunistas da III internacional. Não entende que aqueles pressupostos são agora preconceitos e que o antifascismo já não é uma estratégia de luta em versão radical ou frentista, consoante as conjunturas, mas um atestado de estupidez porque não faz hoje qualquer sentido.
O terreno em que se vai colocar o futuro combate político é novo para a esquerda portuguesa. Não está preparada para ele e, vai daí, brada contra a única coisa que conhece; o «fascismo», evidentemente. Agita ainda o fascismo como um espantalho arruinado que já não pode desempenhar a sua função.
Os jovens de hoje, cada vez mais afastados do pequeno e vazio universo ideológico da esquerda nacional, não estão virados para as soluções que ela lhes apresenta ou seja, para o famigerado «antifascismo» pela simples razão que depois de mais de duas gerações de educação democrática e livre nem compreendem bem o alcance desse chavão. Ele nada lhes diz e têm mais em que pensar.
Já agora um conselho desinteressado aos esquerdistas mais lúcidos, que poucos são. O vosso papel na vasta reforma democrática que se avizinha é evitar que a lógica dura do mercado se sobreponha ao serviço público o que passa pelo equilíbrio instável entre ambos. Mas neste combate não estais isolados nem melhor preparados. A direita ou aquilo a que chamais tal já percebeu esta aporia há muito tempo, já lhe tomou a dianteira, e tem respostas. O que vos vai suceder é que para tomarem parte construtivamente nas polémicas que se avizinham têm de se desfazer da ganga ideológica que se agarra ao vosso corpo intelectual como sujidade. Mas no nosso país vai demorar muito tempo. Talvez na próxima geração.