Passei anos da minha vida a gozar com as lamechices dos pais dos filhos dos outros. De cada vez que via uma criança a portar-se mal num restaurante, prometia a mim mesmo que comigo ia ser diferente. De cada vez que via um pai babado a louvar os rabiscos do seu filho, prometia a mim mesmo que eu saberia manter a compostura.
Foi então que, por experiência própria, compreendi que mais difícil do que manter promessas eleitorais é manter promessas parentais. Um pai com filhos pequenos recua mais nas suas convicções iniciais do que um Ferrari em marcha atrás. E para apanhar um pai em contradição entre o discurso e a prática não é preciso abrir o baú das recordações ou chamar o Polígrafo. O discurso inflamado do jantar de solteirões de antigamente, vai inteiro para o caixote do lixo, uns anos depois, durante o almoço dos amigos casados.
O problema não são os grandes feitos que os pais fazem em prol dos seus filhos, como ir com eles para as urgências do Hospital a meio da noite, porque a febre não baixa. O problema são os pequenos feitos, como aproveitar a hora de almoço no escritório para ir comprar carteiras de cromos para a caderneta do menino ou aproveitar o email profissional para perguntar se alguém na empresa tem os cromos 51, 62, 89 e 94, sem ter noção do ridículo. O pior é aprender a jogar “Super Mario”, na Nintendo, às escondidas, para ter uma conversa de igual para igual com o petiz, durante o jantar.
Os filhos pegam-se aos pais mais do que o “slime” se pega à roupa e às tantas já somos todos lá em casa que fazemos a caderneta, como somos todos que nos entusiasmamos com o que os entusiasma a eles. Podia ainda relatar casos de pais – não eu, claro – que, por alturas do Carnaval, vão à “Mascarilha” pelas 8h30 da matina e quando chegam ao escritório já levam no banco de trás um fato de Darth Vader, tamanho 8-10 anos. Em qualquer caso, quando li há tempos uma notícia de que um grupo armado roubou mais de 30 mil cromos do Mundial de Futebol da gráfica da empresa Panini, pensei logo que ainda há pais mais devotos do que eu.
E é então que ainda antes de as crianças aprenderem o caminho marítimo para a Índia, ou de saberem dividir por dois algarismos, surge um fenómeno que também desconhecia, antes de ter filhos. É que eles crescem sem pré-aviso, nem carta registada. Este ano, não só Portugal é finalista para o Mundial, como em todas as escolas deste país há outros finalistas, sem quase nos termos apercebido dos jogos de apuramento. Se há tema com que também gozei anos a fio foi o desta moda de chamar finalistas a crianças que não querem comer a sopa. Mas, depois, olhamos para o nosso finalista lá de casa e tudo muda de perspectiva. Apostado em ver o copo meio cheio, resta alegrar-me com o facto de, no colégio do meu filho, os finalistas da quarta classe não irem festejar para Lloiret del Mar.
Há sete anos entreguei, na sala laranja, um bebé a duas pessoas que não conhecia, para fazerem dele uma criança feliz, realizada, sociável e educada. Há três anos voltei a entregar a mesma criança a uma professora que não conhecia, para fazer dela um menino crescido, feliz, realizado, sociável, educado e sabedor. Sete anos depois, recebi de volta um finalista de calções. Não sei bem por que passes de magia, mas o certo é que o meu filho já passou para lá da Taprobana.
Às vezes ainda tem comportamentos de três anos e outras vezes respostas de adolescente. Às vezes consegue mesmo a proeza de ter ambas as coisas ao mesmo tempo, mas não há dúvida que a escola regou e adubou o meu filho, que foi crescendo como o feijoeiro que se coloca no algodão humedecido. Quem tem filhos finalistas do quarto ano sabe bem do que falo quando digo que este momento de final de ciclo é um momento de realismo mágico, que poderia bem ser descrito por Gabriel García Márquez. É como se o “Amor em tempos de Cólera” se transformasse no “Amor em tempos de Escola” e no final tudo fizesse sentido.
Como é que um conjunto de crianças a brincar numa sala se transforma, pela magia das educadoras e das professoras, numa selecção de meninos e meninas com arte, ciência e cultura e como é que uma professora faz uma criança ler, escrever e contar é um dos milagres que nos habituámos a aceitar, sem questionar. Como é que se passa do estudo dos dias da semana, para as dinastias dos reis, das contas de somar, para as equações, dos pronomes e dos advérbios, para os tempos verbais, é uma ciência que a própria razão desconhece.
De cada vez que o “meu mais velho” vai para o colégio com os cromos Pokémon na mão, vejo que afinal os cromos são eles e que foram os “Fernando Santos” do Colégio, como acontece em todas as escolas país fora, quem soube construir uma equipa de sonho. Em cada sala de aula há os criativos, os alas, os trincos, os avançados e os defesas. Há espaço para todos e todos é que fazem uma equipa. Os cromos são eles e nós é que somos a caderneta onde eles se colam.
No colégio do meu filho as cerimónias de comemoração são sempre simples e sentidas. Este ano a peça de teatro final foi o Gigante Egoísta, do Oscar Wilde, a lembrar que, como dizia Fernando Pessoa, não somos do tamanho da nossa altura, mas do tamanho do que vemos. E o que espero que os finalistas de metro e meio percebam é que só se pode ver o mundo lá fora se, como o Gigante fez, se deitarem abaixo os muros. Incluindo os que os pais teimam em construir para procurarem proteger os seus filhos. Só por causa disso, hoje o meu filho vai poder não comer sopa!