Todos os que aprenderam a andar de bicicleta em criança podem comprovar, mesmo passados muitos anos, que continuam, por um qualquer mistério, a saber a técnica. Pode estar-se enferrujado e já não se saber fazer cavalinhos, mas o essencial está lá.

Mas se andar de bicicleta nunca se esquece, o que se esquece é o que custa ensinar a andar de bicicleta. Damos por adquirido que foram os nossos pais que nos ensinaram a andar, mas não valorizamos bem esse sacrifício. Ninguém se lembra quantos dias, quantas viagens, quantas dores nas costas dos progenitores durou aquela tortura até ao dia em que, por magia, a criança se equilibra. E, mesmo nesse dia, o que se conta é que o miúdo já consegue andar de bicicleta, como se de tanto jogar na raspadinha, lhe tenha saído por sorte esse prémio.

Todas as palmas vão para o menino, que é tão gracioso a andar na bicicleta comprada pelos avós, com a roupa a condizer comprada pela mãe. Relativamente àquele ser vivo que ficou lá atrás a arfar agarrado a uma árvore, com a cabeça baixa no meio de uma poça de transpiração não reza a história. Esse ser vivo sou eu.

Nem o Brecht, que percebeu que o rio vai violento por causa das margens que o comprimem se lembrou de escrever que o petiz vai formoso, na sua bicla retro-vintage, por causa do pai, que tem as costas feitas num oito. A expressão “isto é como aprender a andar de bicicleta” é um dos grandes branqueamentos da História e disso ninguém fala. E se, por acaso, o momento sofrido em que a criança e a bicicleta finalmente começam a andar sozinhas é registado em fotografia, é certo e sabido que do pai apenas se verá, quanto muito, uma mão tremida a largar o assento da bicicleta. Se o Trotsky ensinou o seu filho a andar de bicicleta, não se deve ter surpreendido quando foi eliminado das fotografias do regime. Já seria a segunda vez que isso acontecia.

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Acho mesmo que uma das razões pelas quais os homens têm mais de um filho é porque, com o tempo, se esquecem do que custa ensinar uma criança a andar de bicicleta. Um pai chega a casa estafado depois de um dia de trabalho e, para arrancar a criança da televisão ou do tablet, lança o tema de que se vai arrepender logo a seguir: e se fossemos dar uma voltinha de bicicleta lá fora?

Dito assim até parece uma óptima ideia e um belíssimo momento de “quality time” entre um pai e um filho. Mas não. O que aí vem é uma tortura chinesa, que nos irá atirar ao tapete ainda antes de o petiz ir ao chão. Quem estiver a ler isto com dores nas costas, sabe do que falo. Quem já não se lembrar, corre o risco de ir ter mais um filho em breve, e depois não diga que eu não avisei.

Tudo começa com a preparação. Quem leva a bicicleta, que pesa uma tonelada, da arrecadação para a rua? E quem carrega o capacete e uma garrafa de água, não vá o “menino” cair ou ter sede? A seguir vem o “briefing”, quando o rapaz já se começa a impacientar e ainda nem começámos. Só há três regras básicas, digo eu, armado em especialista teórico-prático das bicicletas: dar sempre aos pedais, segurar bem o guiador e olhar sempre em frente. Acaba-se o “briefing” e o miúdo, ainda sem dar uma única vez aos pedais, já está a comer a barrita energética que a mãe lhe deu às escondidas, por causa do esforço.

É então que começa a aventura: ele, sem qualquer noção de equilíbrio e aparentemente pouco preocupado com isso, lá vai, todo inclinado para um lado, com os pedais parados e a olhar para mim, para ver se eu não o largo cedo demais. Eu, na posição ridícula de um pai nestas andanças, a segurar o assento apenas com uma mão, para parecer que não estou a segurar em lado nenhum, com o braço a latejar, por ter o peso todo só de um lado, a correr atrás da bicicleta, semi-acocorado, ora a empurrar, ora a travar, numa posição humilhante, que poria qualquer atleta olímpico KO ao fim de um minuto.

As bicicletas infantis deviam ter a altura de um carrinho de supermercado, que se consegue empurrar na posição de Homo sapiens sapiens, em vez de terem a altura de bicicletas para crianças, que só se conseguem empurrar na posição de Neandertal agachado. Não consta que nenhuma criança tenha dado grande queda enquanto aprendia a andar de bicicleta, quer a bicicleta seja alta ou baixa e assim como assim sempre se evitavam umas contracturas musculares que ficam para sempre. É como andar de bicicleta. Quando se arruínam as costas, nunca mais se esquece.

O pior de ensinar uma criança a andar de bicicleta é que quando a queremos arrancar do sofá, nunca lhe apetece ir andar, mas quando já estamos nós arrasados e asmáticos, a perguntar-lhe se não tem saudades do canal Panda, nunca lhe apetece acabar com aquele bem-bom. Eis a rotina de um pai em todo o seu esplendor: o filho, já jantado, todo contente com o passeio do fim de dia e eu, já todo transpirado, ainda por jantar, à espera do fim do dia.

Até que há um momento em que tudo muda. Há um dia em que as estrelas se alinham e a brisa do fim de tarde endireita a bicicleta e a magia acontece. Há um dia em que o peso inacreditável no assento deixa de se fazer sentir no antebraço dorido e as costas se começam a levantar à medida que vamos vendo a bicicleta avançar sozinha. É nesse dia que todo o esforço faz sentido e com o largar da bicicleta parece que é verdadeiramente o nosso filho que largamos para o mundo, num momento único e emocionante de transição geracional.

Como uma corça suspira pelas águas, assim minha alma suspira por esse dia. Se isto não é fé, não sei o que seja.

Advogado