Pioneirismo francês

A França foi por muitos séculos vanguardista nas soluções político-ideológicas e institucionais. Com Luís XIV, foi precursora do Estado Absoluto, modelo copiado, décadas depois, como Despotismo Iluminado por outras monarquias europeias; foi também a pátria de Revolução de 1789 e da solução bonapartista, uma reedição moderna do cesarismo romano cujo grande protagonista morreu há 200 anos. E ao longo do século XIX – com a Restauração legitimista, as várias modalidades de monarquia constitucional, o Segundo Império, a Comuna de Paris, a República dos Duques, o protofascismo de Barrès e Drumont, o neo-tradicionalismo da Action Française – nunca faltou à França iniciativa política.

A isto não foi alheio o facto de ser a nação mais povoada da Europa e uma das mais unidas. E foi-o desde o fim da Guerra dos Cem Anos ao reinado de Francisco I e à Revolução. Mas, ainda que no século XIX as coisas tivessem mudado com as progressivas práticas malthusianas e as consequências da modernidade social e de costumes, o pioneirismo político francês voltou no século XX, com o presidencialismo gaullista da Quinta República e o Maio de 68.

Mas ter-se-á esgotado, este pioneirismo francês?

Há quem ache que não e esteja ou alarmado ou agradado, vendo na Carta-manifesto, assinada por umas centenas de oficiais franceses na reserva (cerca de vinte generais, cem oficiais superiores e mil de patente inferior), um apelo ao golpe de Estado. Tanto mais que, por coincidência, a dita Carta foi publicada em Place d’Armes – le Site Engagé de la Communauté Militaire a 21 de Abril de 2021, o dia do 60º aniversário do Putsch dos Generais em Argel.

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O golpe de Abril de 61

Em Abril de 1961, quatro generais franceses – Salan, Jouhaud, Challe e Zeller – desencadearam um golpe destinado a impedir a política de independência da Argélia do general De Gaulle.

De Gaulle tinha sido trazido de volta ao poder em 1958 por um movimento popular, o Treze de Maio, promovido pelos militares e pelos franceses da Argélia, europeus e muçulmanos, que queriam continuar franceses. Com o Treze de Maio, veio a queda da Quarta República e o apelo a De Gaulle para que regressasse ao poder do seu exílio de Colombey-les-deux-Églises.

O General aceitou, embora com algumas reservas quanto à Argélia Francesa. Daí nasceu a Quinta República, presidencialista, mas De Gaulle, depois de uma quase completa vitória militar no terreno, não levou por diante a política de integração argelina e iniciou negociações com o Front de Libération National.  E os generais deram o golpe.

O golpe foi conduzido por unidades de elite, entre todas pelo Premier Régiment Étranger de Parachutistes, comandado pelo tenente-coronel Denoix de Saint Marc que, em poucas horas, se apoderou de Argel. Mas os revoltosos não quiseram armar os civis, os soldados do Contingente Geral não aderiram e os “putschistas” assustaram-se com os riscos de guerra civil, perante a resistência de De Gaulle, então apoiado por todo o centro, pela esquerda e pela maioria do Corpo de Oficiais, que respeitava a legalidade.

Ao fracasso do Putsch seguiu-se a formação da OAS, a prisão e deserção de muitas dezenas de oficiais pró-Argélia Francesa, a purga de muitos mais e, depois de um ano de terrorismo e contra-terrorismo, a independência da Argélia, em 1962.

Este Putsch dos Generais foi a última intervenção directa da “La Grande Muette” na vida política francesa. Ou a penúltima, porque houve uma outra, quando De Gaulle se meteu num helicóptero e foi a Baden-Baden pedir ao general Massu, comandante das forças francesas na Alemanha, apoio militar para resolver a crise do Maio de 68, com a república ameaçada pela violência esquerdista nas ruas de Paris. Massu recebeu-o e garantiu-lhe o apoio das suas tropas. Em troca, exigiu que os oficiais ligados à Argélia Francesa que ainda estivessem prisioneiros fossem amnistiados e libertados. E foi assim, troca por troca, que De Gaulle voltou nesse mesmo dia a Colombey e a Paris e pôde neutralizar a desordem e ganhar as eleições.

A Carta-manifesto dos generais franceses

A Carta-manifesto dos militares na reserva, dirigida ao Presidente da República, ao governo e aos parlamentares, pretende ser um aviso e uma denúncia dos perigos que ameaçam a França, começando pelo “delírio” que, “através de um certo anti-racismo”, promove “o ódio entre as comunidades” e alimenta “a guerra racial”, numa agressão permanente à História, à cultura e aos valores franceses.

O Manifesto refere a violência racial induzida, as decapitações, os atentados e, sobretudo, a ausência de reacção oficial perante estes actos subversivos. E citando o cardeal Mercier – “Quando a prudência prevalece por todo o lado, a coragem não tem lugar em lado algum” –, os militares signatários apelam aos poderes instituídos, lembrando os perigos do laxismo e do adiamento de decisões. Perigos que poderão conduzir, por desleixo das autoridades competentes, a uma “intervenção dos nossos camaradas no activo, em perigosa missão de protecção dos nossos valores civilizacionais”. E concluem com um aviso: se nada for feito, e perante o risco de guerra civil para “pôr termo ao caos crescente”, os mortos “serão aos milhares” e “da vossa responsabilidade”.

Os culpados do costume

A reacção dos políticos não se fez esperar: o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, declarou-se insubmissamente indignado e pronto a pôr cobro a qualquer intervenção pretoriana, pedindo penas exemplares para os signatários; e a ministra da Defesa, Florence Parly, viu no apelo dos militares uma “grande maquinação política da extrema-direita” e uma conspiração “para fracturar a nossa nação”.

E quando Marine le Pen manifestou o seu respeito pelos militares, dizendo que não lhe parecia tratar-se de uma ameaça de golpe de Estado, mas antes de uma legítima denúncia de cidadãos que, até pela sua carreira e experiência, se sentiam especialmente responsáveis pela segurança e defesa nacional, a restante classe política rasgou as vestes. O Ministro da Justiça considerou Le Pen “a comandante-em-chefe dos facciosos”; o Ministro do Interior fez referência à herança do militarismo do pai Le Pen; e uma outra dirigente de esquerda lembrou que o próprio Rassemblement National era, de direito próprio, “um partido de golpistas”.

Ora a Carta, que alguns querem ler como um incitamento a um golpe de Estado de ex-combatentes aos seus camaradas nas fileiras, tem sobretudo que ver com aquilo que ninguém ignora, excepto os que fazem por ignorá-lo: a deterioração securitária em França nas cinturas das grandes cidades, que se transformaram em santuários de crime organizado e de movimentos fundamentalistas e jihadistas, onde a polícia evita entrar. São estas as “múltiplas parcelas da nação” transformadas “em territórios submetidos a dogmas contrários à nossa Constituição” a que se referem os signatários do Manifesto. E o que ressalta da Carta não é a ameaça de golpe: é o facto de nem os redactores do Manifesto, nem a maioria dos seus camaradas no activo quererem os militares envolvidos em operações das quais há tristes memórias em França – em Fourmies, em 1891, em Limoges e Nantes, no princípio do século XX. Ou na Irlanda, com o Exército inglês, no Bloody Sunday, em 1972.

O exército não está preparado para funções de polícia, mas para a guerra. E usar forças militares, treinadas e armadas para a guerra, em operações de ordem pública, onde além de outros problemas técnico-securitários, há sempre o perigo da força excessiva, é um erro que se paga caro. E é a isso que os signatários não querem que se chegue.

Mas pouco importa: aparentemente, os “militares golpistas” que assinam a Carta-aviso e a “extrema-direita golpista” que supostamente os comanda e inspira são os culpados do costume e há que acusá-los – até para desviar as atenções de um problema que se agiganta e que é, sobretudo, de decisão e de coragem política, ou da falta delas.

O golpe que os “golpistas” não querem

O problema é político e não é alheio aos guetos tolerados e às instruções dadas à polícia de “conter mais que reprimir”.

E há, por parte dos militares e de grande parte do povo, a consciência de que um poder fraco, hesitante e inseguro, que tolerou zonas francas de criminalidade, pode sempre cair na tentação de recorrer à tropa se a violência escalar. Neste quadro, a mensagem dos generais e dos seus camaradas na reserva vem sobretudo no sentido de exortar o poder político a ser firme no tempo e no modo do uso da força, para que mais tarde não seja obrigado a recorrer à violência da intervenção militar.

Quanto a Marine le Pen, estará interessada em tudo menos em pronunciamentos pretorianos. Como outros líderes da direita nacional e popular europeia, sabe que nada tem a ganhar com golpes de Estado ou perturbações da ordem republicana. E que, bem pelo contrário, nas sociedades euro-americanas de hoje, com a burguesia dos negócios e os tecnocratas transformados em capatazes de interesses económicos estrangeiros e a agressão dos mandarins da Academia e da Comunicação contra a história e a cultura nacionais, é na comunidade dos cidadãos – e no seu voto – que reside a resistência e a defesa dos valores e princípios da liberdade, da identidade e da cultura nacional.

Assim, desiludam-se aqueles que, com agrado ou com temor, querem ver na Carta-manifesto dos generais um novo pioneirismo político francês, que seria, nem mais nem menos, que um golpe e uma ditadura militar em pleno coração da União Europeia. Nada disso: o mais provável é que a comoção à volta da Carta não vá sequer funcionar como aviso. Ao que tudo indica está já a ser transformada em mais um fantasma no teatro da ameaça fascista. Um fantasma útil para os que os que nada ouvem e pouco fazem se sintam reconfortados e empolgados na “defesa da Democracia e da Inclusão”.