Há uns anos, convidaram-me para falar num determinado evento sobre um problema de políticas públicas que na altura era muito discutido. Como não conhecia bem o problema sugeri que, em vez de mim, convidassem pessoas que o tinham estudado. A ideia não foi aceite porque essas pessoas não seriam independentes, querendo isto dizer, na perspetiva da organização do evento, que já tinham feito estudos para algumas das partes interessadas e, portanto, estariam comprometidos com quem lhes tinha encomendado esses estudos. No fim, foi chamado a pronunciar-se alguém que pouco ou nada percebia do assunto, mas não tinha, que se soubesse, ligação a nenhum dos interessados na matéria – era “independente”. Faz sentido? Acho que não.

Esta coisa de se rejeitar uma opinião com base na descredibilização do seu autor é antiga. Tem a ver com mandar matar o mensageiro, em vez de deixar ouvir a mensagem, proeza atribuída a um Dario persa, que não ficou melhor na história por isto. Mas também se entende há muito, e corretamente, que se trata de uma falácia de argumentação – e, assim, deve ser evitada. Os argumentos devem valer por si, independentemente de quem os defende. Já houve tempos em que se ensinavam estas coisas na universidade, logo no primeiro semestre da licenciatura. Esperava-se que os futuros licenciados não caíssem nisto ao longo das suas vidas profissionais, mesmo que se dedicassem à política ou ao comentário político. E nem era preciso ir à universidade. A cultura popular rejeitava a mesma falácia. Por exemplo, no futebol falava-se de “ir ao homem e não à bola”, em sentido negativo. Quem ia ao homem e não à bola era o caceteiro de serviço, um cepo, sem jeito nenhum. Quem sabia jogar à bola e gostava do jogo, ia à bola e não ao homem – e era isso que queria quem gostava de futebol.

No entanto, no debate de muitos temas de políticas públicas temos aceitado que prevaleça o caceteiro, ou que se mate o mensageiro, salvo seja. Vai-se ao homem para não ter de se jogar à bola. Faz-se depender a credibilidade de uma posição sobre políticas públicas do grau de “independência” que, face aos interesses envolvidos, tenha quem a enuncia. Isto é, se alguém se pronuncia sobre um assunto que envolve interesses divergentes, económicos, sociais ou políticos, mas tem algum tipo de ligação a algum desses interesses fica com a sua credibilidade prejudicada, mesmo que seja especialista do tema. Se outra pessoa, pelo contrário, for tida como independente dos interesses em presença, então a sua posição ganha uma credibilidade acrescida, mesmo que não perceba nada do assunto – desde que consiga disfarçar a ignorância. É frequente ouvir dizer, quando se pretende valorizar o que uma pessoa diz, que a pessoa em causa é um, ou uma, “independente”! Ou que não é, quando se pretende o efeito contrário. Como se essa “independência” fosse o valor absoluto.

Esta atitude degrada obviamente o debate de políticas públicas. Não se discutem os méritos das ideias em si, especula-se sobre as motivações de quem as tem. Além disso, desperta-se aquela dose de preguiça que está latente em todos nós. Se, atacando o seu autor, podemos evitar a trabalheira de defender ou de criticar uma determinada posição, então assim seja e vamos lá que já se faz tarde para o almoço. Para mais, a categoria de independente vale o que vale. Quando dois portugueses se encontram, ou se conhecem ou existe pelo mesmo um terceiro que conhece os outros dois. Existem muitos laços pessoais e informais que ligam muitos intervenientes de políticas públicas que nem sempre são conhecidos. E enquanto não forem, há muita gente que passa por “independente” sem o ser.

O público deve ser protegido das mentiras e de interesses velados, quando se discute o uso que se faz do seu dinheiro, ou quando o Estado condiciona a atuação dos privados. A melhor forma de proteger essa transparência não é atacar os que propõem políticas públicas, é mesmo discuti-las abertamente. Caso contrário, lá andamos de engano em engano.

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