Em 2018, numa entrevista ao Público, o Bastonário da OM, Miguel Guimarães, anunciou que iria apresentar à sua Ordem uma proposta tão revolucionária quanto imprescindível: que os médicos deixassem de ser tratados por “doutores”. Esmiuçadas as razões aventadas para a proposta, sobrava o incómodo do Bastonário de que, num país com tantos licenciados, houvesse muitos “doutores”. O raciocínio era linear: se todos são doutores ninguém o é. Ora, os médicos merecem melhor sorte, ou seja, na perspetiva do Bastonário, um vocábulo alternativo (que este não foi capaz de sugerir) que os identificasse e distinguisse da horda dos falsos “doutores” dos canudos. Cremos que se esta proposta tivesse avançado todos os problemas do SNS e da classe estariam já resolvidos…
Em resposta à entrevista do Bastonário, Ricardo Araújo Pereira (RAP), quando perguntado que outra designação poderia a profissão médica reclamar, fez uma sugestão. Dizia RAP que uma pessoa que desperdiça a sua adolescência e juventude a estudar «à bruta», primeiro para entrar na Universidade, depois ao longo do curso, depois para se especializar e, como se não bastasse, tem ainda de estudar ao longo de toda a vida para se manter actualizado porque «lá descobrem um bolor qualquer que cura não sei o quê», e que, ainda por cima, recebe mal, faz urgências de 24h, trabalha em serviços depauperados, com excesso de doentes e condições arcaicas, só pode ser parva.
Portanto, a nova designação dos médicos deveria reflectir esta espécie de masoquismo: em vez de “doutores”, melhor seria serem chamados de “parvos”.
Estamos totalmente de acordo com a sugestão, tanto mais que os títulos dos jornais passariam a fazer mais sentido. Vejamos alguns exemplos: “Magistrados e deputados com mais aumentos, parvos ganham menos” (JN, 26.06.22); “Ordem alerta para falta de parvos de todas as especialidades durante o verão” (Público, 18.06.22); “«Queremos contratar todos os parvos que queriam trabalhar no SNS», diz Marta Temido” (Sol, 15.06.22) “Parvos. «Estamos exaustos»” (Sol, 22.08.21); “Parvos fogem do SNS” (Sol, 15.08.21).
Quatro anos depois, e inquirindo do estado da proposta de Miguel Guimarães, quero juntar‑me a ele e, seguindo o raciocínio de RAP, sugerir, então, que se acabem de vez com os “doutores” nos hospitais, ficando no SNS apenas esses grandes “parvos”, que se dedicaram de forma abnegada durante os picos da pandemia, segurando o funcionamento dos serviços in extremis, não gozando férias e fazendo milhares de horas extraordinárias, para receberem, além de um simbólico prémio de desempenho, muitas palmas às janelas e, qual recompensa mor, a final da Champions, conforme anunciou com pompa António Costa.
Aliás, esta nova designação deve ser apreciada pelo Primeiro-Ministro, que não há muito tempo se referiu aos médicos como «cobardes», naquilo que pode ser outra proposta interessante neste concurso de nomes. A própria Ministra da Saúde já anunciou a necessidade de se contratarem “parvos” ainda mais «resilientes». Como qualquer observador atento já terá concluído, para a parvoíce humana não há limites, pelo que as ambições da Ministra, terão, com a nova nomenclatura, mais hipóteses de sucesso.
Também a Directora-Geral da Saúde nos bafejou com os conselhos de saúde pública mais relevantes dos últimos tempos: ser abstinente para prevenir a varíola dos macacos e evitar o bacalhau à Brás, deixando, assim, poucas alternativas para a época estival. Ainda acrescentou que «o pior que pode acontecer» é adoecermos em Agosto, porque os nossos “parvos” (imagine-se… tão “parvos”…) estão de férias. O Presidente da República completou o ramalhete, vindo a público anunciar que, neste Verão, cada português «fará o esforço para não estar doente». Obviamente, porque temos poucos parvos.
Esta sucessão de declarações dos altos representantes políticos (e técnicos) da Nação mostra que há muito está aberta na saúde a silly season, sem que, todavia, haja perspectivas de que termine no fim deste Verão. Ainda mais grave é ter o Governo contratado um director-geral para coordenar a comunicação de todos os membros do executivo. E ele vai ter muito trabalho pela frente. É que nisto da comunicação não basta assegurar que ao mesmo tempo que o Ministro X fala na AR o Primeiro-Ministro não fala na TV. Antes, é preciso abordar o problema mais sério e mais complexo do conteúdo das declarações públicas dos nossos políticos, para evitarmos que caiam no ridículo, antagonizando uma classe inteira e descredibilizando os seus cargos. Numa palavra, os governantes não devem ser parvos.
Na verdade, realmente parvas (e muito!) são as sucessivas afirmações dos nossos mais altos representantes, que se deviam limitar a juras e a agradecimentos públicos a uma profissão que, estafando-se, é mal recompensada e pouco valorizada pelo Estado, acusada da parvoíce (lógica…) de ir procurar no privado o que o público teima em não garantir.
Neto, sobrinho e marido de médicos, profissão nobre que aprendi a respeitar, posso assegurar que não são parvos. Mas por tão mal serem tratados pelos governantes, levou-me a sempre pedir aos meus filhos: não queiram ser médicos.