1. Acaso ou coincidência, hoje deu-me para aqui. Em Portugal gosta-se mais de mortos que de vivos. São sempre melhores quando morrem. É qualquer coisa de bizarro. Teimo em achá-la um exclusivo nosso, não sei se será. O que sei é que a excelência, o génio, o exemplo, o serviço, a coragem, a santidade, deixadas como assinatura nesta pobre pátria são por uso e costume pouquíssimo apreciadas. Isto, para resumir benevolamente a ferocidade da inveja ou a arrogância do desprezo com que os melhores dos vivos são olhados – ou combatidos – enquanto vivem. Mas só na sua condição terrena. Mal se despedem eis que, por um misterioso processo mental, se soltam velozes os sinos do pesar, trazendo consigo lacrimosos louvores nunca antes ousados. Morrer compensa.
O país, por um breve entre parêntesis é como se ficasse de serviço ao acontecimento, pedem-se obituários e comentários aos habituais porta vozes de tudo, o ar impregna-se de uma aura de beatitude.
As vezes, há segunda sessão. Num impulso onde portuguesmente se diluem a saudade e o remorso, a culpa e o arrependimento, organizam-se efemérides, convidam-se oradores e plateias para tardias homenagens de glória e reconhecimento (porém raramente proferidos em tempo útil).
Já assisti, diante de urnas abertas ou fechadas ou depois em sedes diversas, a loas capazes de ressuscitar o próprio morto. Singular condição estranho mecanismo que nos tolhe a consideração e nos veta o reconhecimento em vida e voz alta. Mesmo que haja excepções e obviamente que há, prefere-se o elogio fúnebre que pretensamente nos redimirá de pecados passados e invejas mortíferas, mas será que um morto tem ouvidos? Que o exercício convence e comove?
“Antes assim”, dir-me-ão. “Mais vale tarde que nunca” e outros adágios.
Não, digo eu. Um elogio — o reconhecimento, melhor dizendo – requer sustentabilidade. Como o desenvolvimento. Reclama verosimilhança, raiz, fundamento. Não pode ser fruto da 25ª hora, irrompendo publicamente de bocas e mentes até aí avaras a ele.
2. Ocorreram-me estes tristes considerandos porque há dias, testemunhei uma homenagem a alguém vivo. Um homem real, de carne e osso e não já um “santinho” impresso em papel esfumado.
Foi uma raridade ver Roberto Carneiro, sentado como qualquer um de nós na plateia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica a ouvir falarem-lhe de si.
Mas foi a tal coisa: o elogio era sustentado, tinha chão de baixo dos pés. E justamente porque ele estava ali, os louvores biográficos tiveram o tom certo e a medida justa. Dispensaram-se efabulações, bastou a realidade que era sólida e foi grata de recordar. E depois houve Marcelo — e quem havia de ser? — a rematar. Como de vez em quando está a sério nas coisas, esqueceu por momentos selfies e povo – seus grandes cúmplices e amparos políticos – e ocupou-se de alguns passos da vasta e vária biografia de Roberto Carneiro.
Atardou-se no ministro da Educação que ele foi entre 1987 e 1991. Fez bem. O que lá vai interessa pouco e se não tiver tido o beneplácito da esquerda — partidos e sindicatos — é para negar e apagar de vez. Como se nada tivesse sido feito. Sucede que o trabalho de casa de Marcelo era sólido. Será difícil desmenti-lo. E depois o Presidente da República foi simplesmente ter com um dos seus temas – Deus – para nos relembrar como o Roberto Carneiro “público” — o homem das ciências da Educação, o percursor, o académico, o investigador, o estudioso — fora sempre precedido pelo homem de fé, agindo e “sendo” inspirado por ela e através dela.
No final Roberto Carneiro, ladeado pela sua família, ao despedir-se de nós no palco, pediu num sussurro já um pouco fatigado “se rezávamos um Pai Nosso com ele, em voz alta”. Assim se fez.
Não me custa adivinhar a comiseração ou o riso alarve de que serei alvo por rematar este texto com a história de uma oração celebrada com seriedade no final de uma cerimónia. Julgo porém que é justamente por causa de gente assim e da exemplar exposição de uma forma de ser contra o ar do tempo e do vento, que o mundo ainda não caiu.
3. Nisto de estar entre os vivos a louvar os mortos, o maior peso que sinto quando lá estou – e estou por considerar que nesse momento é onde devo estar — é se lhes terei dito, a todo esse cada vez maior leque aberto de amigos de quem já me despedi, como os apreciava. Gosto de gostar e depois dizer que gostei mas terei sido suficientemente persuasiva?
Terei dito ao Vítor Cunha Rego quando o visitava no andar penumbroso onde vivia, a gratidão pelo mestre paciente que foi para mim (e nada terei aprendido) ? Manifestei ao Francisco Sousa Tavares — que tão incrivelmente generoso foi comigo numa altura delicada da minha vida — o quanto apreciei o lado impetuoso da sua coragem? Ao João Benard confessei como foi bom estar viva ao mesmo tempo que ele ? Ao João Lobo Antunes, com quem na RTP, aos 17 anos, comecei esta vida do jornalismo, terei dito como me rendia diante daquela espécie de sobrenatural dom com que ele tocava qualquer dos seus exercícios — científico, académico, cultural, cívico? Agradeci ao Raul Solnado as mais radiosas e permanentes provas de carinho e atenção? Contei à Amália, diva entre as divas, que podia morrer a ouvi-la? Disse muitas vezes ao Vasco Graça Moura que ele fora abençoado pelo génio? Ao José Medeiros Ferreira como me deliciava a subtileza e a cortante ironia que ele usava para argumentar politicamente? A Soares proclamei suficientemente o que lhe fiquei a dever, discordando dele mais que concordando? Fui credível na forma como amei alguns dos que partiram, o tão saudoso Miguel Veiga, o ser delicado que era o Alberto Vaz da Silva, a fogosa Helena, o acutilante Leonardo Ferraz de Carvalho, o meu colega Mário Bettencourt Resendes, o doce Bernardino, amigos e companheiros de várias encarnações mesmo que só numa vida? Disse infinitas vezes à minha irmã Maria José que ela era parte do ar que eu respirava?
Não disse. Fiquei sempre aquém. Se voltassem, dir-lhes-ia. Sabendo que nunca se diz tudo. Talvez porque nunca se espere, de tão inverosímil que é, que um dia as pessoas morram. Como os ”outros”, que não são os nossos.