Faltava que um homem fosse morto e que os autocarros de Lisboa começassem a arder para as  pessoas sentirem o que já deviam ter pressentido há muito tempo – que estavam, estão e vivem,  perto da violência. As desordens nos territórios ameaçados de Lisboa são a primeira, mas ainda experimental, aproximação ao caos. Se tudo correr bem e a impunidade conseguir juntar na  televisão uma agremiação de esquerda que fale em justa revolta contra a polícia fascista, um idiota  do centro a propor algumas palavras de repreensão, parques infantis e psicólogas fofinhas, e um  incendiário de direita sugerindo que um fogo ateado por pretos se combate com um contrafogo  ateado por brancos, se tal for possível – e parece muito possível sob o patrocínio de um jornalista  impreparado numa moderna escola de jornalismo, as que ensinam preferencialmente a falar  depressa e a pensar devagar – se essa majestosa coordenação de pechisbeques se juntar para salvar  o país, então, teremos o país a caminho da perdição. Ainda mais a caminho da perdição. Será um  mundo novo que se abre, como se esta terra consagrada a Nossa Senhora e tantas vezes pisada pelo  Papa, tivesse caído na mesma desprotecção em que se tem visto o resto do mundo.

Outras indecências são transmitidas pela televisão, as televisões estão sempre a dar desgraças,  algumas recentes e outras tradicionais. Se não há exagero dos jornalistas são acontecimentos que se  passaram ou ainda estão a passar. Mas, por alguma razão adquirem condições para o esquecimento  de cada vez que passam nos ecrãs. A mais perfeita combinação de razões junta o tempo e a  distância. Não há fenómeno mais estranho e menos credível do que montes de crianças a morrerem  ao fundo de Moçambique, naquele bocado mais estreito, depois de passar Maputo e a terra dos  elefantes, onde não cabe um camião de ajuda humanitária. Há a Ucrânia e a sua Rússia, há Israel e  os seus inimigos, mais perto mas suficientemente longe. Vivem, longe e desde sempre, pessoas  metidas em aborrecimentos e tragédias de todos os tipos. Há sempre algum pasmo inicial, houve  sempre – quem não se espantaria ao ver dois arranha-céus caírem como num filme, mas foi há  muito tempo. As grandes desgraças vão-se esfumando, encontram-se cada vez mais protegidas pela  nuvem da inevitabilidade – pois se os homens sempre se guerrearam e se sempre houve fome no  mundo.

Estes problemas agora e os incêndios em Lisboa são mais graves. Só deixarão de ser graves daqui  por um mês. Ou mais, depende muito.

Porque é que estes tumultos perpetrados por rapaziada cheia de revolta, sonhos e cocktails molotov,  são mais explosivos? Pode parecer que é por causa dos cocktails molotov, mas não é, é por causa  dos sonhos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os ditos sonhos são uma combinação desencaixada entre a aspiração de uma geração mais velha a  uma vida melhor e o desejo dos mais novos de ver a bófia bazar, entre outras coisas. Amparam-se  mal, mas reunem-se na zona de clivagem que está a formar-se entre dois mundos. O mundo  ocidental de um lado, que é recusado por todos os que foram ensinados a ver nele a origem do mal,  e do outro lado um mundo emergente que se constrói de causas em agregação contínua e se  comporta como um challenger que só admite a morte do opositor. E tudo isto se passa no corpo das  próprias sociedades ocidentais, desde há muito fragilizadas pelo conforto e pelo medo.

Do lado esquerdo dessa zona de clivagem avoluma-se um projecto que procura reunir todos os que  se sentem desinseridos socialmente – pela cor, pela cultura e religião, pelas preferências sexuais,  por tudo o que der jeito. A estratégia da esquerda contemporânea, herdeira da grande utopia do  internacionalismo mas desanimada da parafernália teórica que a sustentava, apela agora a materiais  de aglutinação diferentes. A noção estruturante de explorados mantém-se no discurso, é necessária  porque existe nela a componente emocional e dramática que move as massas previamente  destituídas de inteligência individual. Foi necessário apenas mudar a identidade dos exploradores e  o território da exploração. O patronato foi substituído no seu papel opressor pelo patriarcado, pelo  homem branco, pela ideologia judaico-cristã, por todas as entidades que podiam ser representações  de uma cultura ocidental e, por extensão, de um modelo organizacional capitalista. O território da  exploração deixou de ser a fábrica e os campos – onde uma corrente comunista anquilosada e em  esvaziamento situa os seus operários e camponeses – e passou a ser todo o tecido social onde possa  respirar um candidato à vitimização. O objectivo e substância da ideologia de esquerda nesta fase  histórica é a criação de uma maioria de minorias sem identificação entre si, apesar da léria  interseccional, que corrija o desaparecimento histórico da classe operária e com a qual possa ser  operacionalizada a transformação social. A esquerda tem para essa sociedade futura uma concepção  ainda difusa e que se materializaria à volta de conceitos igualmente vagos – igualitarismo,  estatização, redistribuição, minorias, participação, ambiente… – mas que faz fé, para ser atingida,  em processos de ajustamento escassamente elucidados e assegurados pela agitação social. Dela  deverá resultar uma emulsão, não do azeite e da água, mas de todas as identidades sociais. A essa  emulsão utópica chamam multiculturalismo. E dela se prevê a mesma estabilidade de uma emulsão  entre água e azeite. Esse percurso interseccional na direcção do multiculturalismo é violento – nem  tudo se perdeu do materialismo dialético – apenas a distribuição da violência ocorrerá com maior  ubiquidade temporal e será descentralizada. O papel do tradicional governo comunista, totalitário e  autorizado ao exercício da ditadura pelos estudantes da Universidade Nova (uma vez que não há  proletariado), proprietário e distribuidor da violência, também se encontra mal definido. Será, seria,  com certeza importante, mas é prematura a sua elucidação. Pode evocar uma memória histórica  traumática.

Numa linha de actuação mais resguardada a nova esquerda alarga a sua intervenção ideológica nas  escolas, já não apenas nas universidades mas junto das crianças e adolescentes, mais moldáveis e  de modo mais perene. Enquanto que a intervenção junto das comunidades tem todas as limitações  de uma reciclagem a madrassização precoce promete criar produtos novos e mais resistentes.

Do outro lado da zona de clivagem que atravessa as sociedades ocidentais situa-se uma crescente  pulsão para soluções ditas de direita. O pensamento de direita – as várias reflexões que estão a  despertar face à ameaça de esquerda – transporta consigo créditos e uma maldição. A seu favor tem  a inserção em fundamentos estruturantes das democracias e de um sistema económico que deu  bem-estar a muitos grupos sociais, tem uma continuidade histórica menos sobressaltada e poderá  ser regenerada com menor turbulência. A maldição que a direita traz consigo, não no seu ADN mas  como um atributo que lhe tem sido posto em cima, é uma putativa afinidade com a ideologia  fascista. Embora os totalitarismos invocados para essa conotação, o fascismo italiano e o nazismo  alemão, se tenham originado em pensamentos cativos da esquerda – poder popular, culto da  personalidade, pendor socializante – a narrativa da esquerda tem conseguido colar a hipotéticos regimes de direita todos os vícios totalitários. Essa persistência em juntar culpas fascistas a  governos de direita que ainda não existem é espirituosamente atrevida. Afinal, sucede num mundo  em que o totalitarismo, a repressão, a censura e a miséria social, já existem de facto, mas sob  governos de esquerda e socialistas – Rússia, China, Venezuela, Coreia do Norte. Mas tem resultado.

O pensamento de direita sustenta-se dos seus argumentos tradicionais, ao contrário da esquerda que  tem feito sucessivas adaptações do seu modelo totalitário básico a soluções organizativas  diferentes. A solução da left actual convive com o comunismo cubano, venezuelano…, já teve  soluções jugoslavas, italianas ou albanesas, e continua palco de diferenças insanáveis, discussões  especiosíssimas, purgas e cisões. Diferentemente, o pensamento de direita tem mantido alguma  consistência – liberdade social e económica, autoridade e hierarquia, competição social e  meritocracia, conservadorismo cultural. O apego da direita a diferentes modos de tradicionalismo  tem sido causa de uma relativa imobilidade do pensamento e a uma inércia que tem prejudicado as  transformações. A simplificação que a direita privilegia na análise social tem desconsiderado como  inúteis e perigosas segmentações sociais por raça, opção sexual ou cultura. Porém, é nesse terreno  que as pessoas que se sentem socialmente enfraquecidas fortalecem a sua identidade, como parte de  um grupo (negros, mulheres, imigrantes não-legalizados, trans-qualquer coisa…), ao mesmo tempo  que se afastam duma identificação mais ampla (cidadãos de uma cidade ou nacionais de um país).  É nesse terreno desocupado que a esquerda define nichos, dá voz a queixas idiossincráticas,  introduz as suas ideias e organiza as suas acções.

A combustão lenta dos bairros periféricos é uma oportunidade para os partidos de esquerda fixarem  a sua ideologia e recrutarem praticantes – podem ser ideias más mas são as que aparecem e as  pessoas tendem a aderir a elas porque têm mensagens de mudança ou legitimam a violência.

O posicionamento de direita em relação a esses territórios que se afastam do estado, tal como à  fragmentação do tecido social e à proliferação de causas, é de aceitação compreensiva – segundo o  entendimento de que as desigualdades são parte inevitável da natureza dos homens e da dinâmica  social e que, pelo efeito combinado da vontade individual e dos mecanismos colectivos, serão  sempre atingidos patamares de equilíbrio. A seguir a esse olhar complacente, seguem-se as medidas  padrão: medidas assistencialistas para situações de desprotecção económica, de beneficiação para  meios urbanos degradados, normalização de idiossincrasias culturais.

É verdade que todas aquelas intervenções pretendem melhorar as condições de vida e a integração  mas, igualmente, o arrefecimento da insatisfação e das tensões. Só por isso, nunca são suficientes.  Porque são sempre de menos, porque atacam um problema nas suas consequências e não nas suas  causas, porque os recursos são muitas vezes mal usados ou vandalizados, porque suscitam apetência para mais, porque se confrontam com a recusa de integração e a preferência por uma  existência subsidiada e/ou de acordo com regras à margem da sociedade. A experiência da europa e  a que virá a ser a experiência portuguesa é de uma insuficiência enorme do assistencialismo, da  compreensão e da tolerância. Medidas dirigidas a grupos sociais com culturas estranhas muito  vincadas, com vidas precárias e minados por ideologias incendiárias, não têm promovido qualquer  espécie de integração. Pelo contrário, têm alimentado na restante população sentimentos de repulsa,  adesão crescente a opções políticas radicais – incluindo projectos irredentistas para áreas urbanas  fora do controle do estado – e apelo a soluções repressivas.

Essa violência centralizada no Estado democrático vai explodir contra a violência disseminada e  supostamente inorgânica. Vai despenhar-se sobre culpados e inocentes ao fim de uma  contemporização que a armou para um efeito de mola. É o perigosíssimo caminho que a esquerda  deseja. Na fase actual, a violência de Estado é quase inócua, porque se limita a garantir que alguém  vem apagar os fogos e apanhar os cacos em segurança, e espectacular, o que permite a manutenção  do discurso contra a violência “fascista”, “racista” e o que mais puder ser dito.

O mundo actual não tem mais problemas e mais carências do que outros mundos em outras épocas.  Mas parece ter. A sociedade global, com meios de disseminação da informação que alinham em  tempo real todos os focos de disfunção numa sequência apressada em meia-hora de telejornal, cria  nas pessoas a percepção assustadora de um desmoronamento global. A confluência de um  assassinato na sua rua com um motim na cidade mais próxima, um terramoto devastador num país  onde já esteve de férias, uma guerra mortífera em vários sítios que todos os dias são mais sítios, as  fomes e as doenças, um transexual que se despe e berra, mil crianças que morrem com fome, um  delinquente que é solto depois de ser detido pela vigésima vez, um político que mente, uma  baderna armada por um grupo de broncos, florestas que ardem há uma semana, um massacre de  milhares num país que nem se sabe onde fica, um avião que cai, três adolescentes que se afogam ao  domingo, um filho que continua em casa, solteiro e sem trabalho… essa sucessão de eventos tem  um poderoso efeito dissuasor da alegria e da vontade. Mais do que a angústia, difunde nas pessoas  uma predisposição à desistência, espalha pelas sociedades uma convicção de irremediabilidade.

Não existem soluções imediatas para um estado de coisas que envolve o planeta e se projecta  segundo uma estrutura fractal. Não é possível resolver ao mesmo tempo a consistência do  engenheiro Guterres e de uma maionese que talhou, ninguém acabará ao mesmo tempo com a  guerra no Sudão e com as rixas entre os superdragões e os nonameboys. Apenas são possíveis  acções em diferentes escalas dirigidas a problemas delimitados, que tudo isso possa ser feito  segundo uma atitude concertada e esperar que daí resultem uma dinâmica optimista e melhorias  progressivas.

Não é sensato ficar à espera que um qualquer organismo internacional apresente um plano para o  mundo. Seria ciclópico, impossível. Cada estrutura organizada, SLB ou país, deve assumir a  responsabilidade de resolver os problemas que estão no âmbito da sua competência. Pode parecer  que é isso que têm feito, mas não o têm feito bem. Por falta de coragem para dizer qual é o  problema, mexer estruturalmente e enfrentar oposições.

Os problemas dos bairros periféricos são os que esta semana geram mais preocupações. Para  alguns, a preocupação é o seu dia-a-dia e os seus haveres, para outros é a segurança e o dia de  amanhã, para quem não vive lá é uma ameaça sombria que pode materializar-se à sua porta, para os  políticos é a premência de devolver a paz a meia dúzia de ruas e aos noticiários.

Qual é o problema?

A resposta conveniente é: a pobreza, a falta de empregos para os jovens, a falta de creches e  jardins, a degradação do parque urbano, a falta de psicólogos e animadores culturais, as carreiras  dos autocarros, os polícias que não são bondosos… tudo isso entre outras coisas muito específicas  como os elevadores avariados e as pedras dos passeios levantadas desde a última intervenção  policial.

A resposta inconveniente compreende todas as razões anteriores e mais algumas:

A guetização de grande número de pessoas com origem cultural diferente e grandemente  refractárias à integração – o facto de serem negros é apenas uma particularidade – uma  guetização que se autoalimenta pelo acolhimento de recém chegados.

A exaltação de uma cultura de violência que faz emergir pequenos grupos dominantes  capazes de impor medo e regras à esmagadora maioria dos concidadãos próximos, pacíficos e  trabalhadores. Existirão cerca de 50 gangs na grande Lisboa, envolvendo cerca de 700  indíviduos.

A preferência de minorias activas por modos de vida que decalcam a vida de grandes ídolos  marginais identificados pela geografia (os bairros negros de nova York), pelo modo de se  apresentarem (sapatilhas de marca com roupas indigentes, penteados étnicos…) ou pelas  músicas com que se influenciam (hip-hop, rap…).

O recurso a modos de sobrevivência marginais, organizados (tráfico, furto planeado…) ou  esporádicos e de recurso (roubo, assalto), e a territorialização das actividades, com controle da  circulação e ocupação do território que abrange rivais e polícias.

A recusa das regras do país em que vivem. Para muitos habitantes dos bairros periféricos  Portugal não é o seu país. É compreensível que assim seja. A aquisição burocrática da  nacionalidade, ou o nascimento no seio de uma família nacionalizada, não realiza um português.  A “nacionalização” não atribui de facto a nacionalidade, dá apenas a cidadania, é uma  imposição para adquirir direito a benefícios sociais e, inclusive, suscita ressentimentos. Que os  governos, tudólogos e aprendizes de jornalismo, ainda não tivessem compreendido isso – que as  irmãs Mortágua já perceberam – é muito mau.

Uma última razão para que os bairros periféricos sejam um problema é o de nunca terem sido  assumidos como um problema – pelos governos, pelos políticos e pela comunicação social. A mais  óbvia constatação de todos os dias é obliterada pela esclarecimento sobranceiro de que é apenas  uma percepção subjectiva, uma estatística inconveniente e significativa tem sempre o contraponto  de uma mais conveniente. Uma identificação precisa tem sempre à espreita uma acusação  barulhenta de racismo e xenofobia, ou a informação pesporrente de que não há crimes colectivos  (com excepção obrigatória ao crime dos judeus sobre os palestinianos e da polícia sobre os negros).  A mais tíbia admissão da verdade arrasta a advertência imediata e sussurrada de que não deve ser  repetida para não acirrar os ânimos ou prejudicar o diálogo. Se esta fase puder ser ultrapassada e a  origem dos problemas puder ser dita publicamente, pode passar-se à fase seguinte.

Qualquer solução para a situação marginal dos bairros periféricos que passe pela repressão ou a  violência é indesejável e só é admissível dentro dos limites da lei. Ou seja, só é aplicável sobre a  delinquência. A tolerância, a educação e a ajuda são as únicas atitudes para os que não cometem  crimes previstos na lei. É uma urgência absoluta dar tranquilidade às pessoas que nesses bairros vivem coagidas, dar-lhes tempo e meios para cuidarem das suas crianças. Para que não cresça nas  ruas uma nova geração de delinquentes.

É necessário terminar com a falácia do multiculturalismo ou, numa versão completamente cínica, o  argumentário de que Portugal precisa de imigrantes para a sua economia. Numa perspectiva  estritamente económica o multiculturalismo não resultou. A melhor realização económica é  conseguida em países que não optaram por essa via – Japão, Coreia do Sul, Islândia… países que,  adicionalmente e não por acaso, são dos mais pacíficos do mundo. Países como os Estados Unidos,  que levaram ao extremo o seu melting pot, têm um progresso económico que depende de um quase  esquema em pirâmide, um crescimento que só pode ser alimentado pelo crescimento. Porém, e sem  surpresa, no plano social a sua situação é explosiva e a menção a guerra civil já não é proibida. O  percurso de países como a Suécia exemplifica com perfeição os efeitos de um investimento  multicultural. Em poucos anos deixou de ser um país próspero, amável, lindo e pacífico, para se  tornar uma sociedade acossada, com medo, mais crime e com importantes constrangimentos  económicos e de desenvolvimento.

O multiculturalismo deve ser substituído pela convivência cultural, uma noção que combina a  liberdade de qualquer estranho conservar acessórios culturais significativos com o estrito respeito  pelos costumes e pelas leis do país onde se acolheu. É compreensível que uma mulher africana se  sinta emocionalmente reconfortada por usar uma capulana mas não é aceitável que o seu homem  venha para a rua numa tanga ritual sacrificar uma cabra.

A extinção de tensões culturais num espaço de convivência já estabelecido não será rápida e não  pode ser violenta. Tem de ser conseguida através de um política de imigração com sentido,  humanizada e firme. É um brutal erro admitir todos os estrangeiros e conceder-lhes automática  cidadania – não pode ser feito, mesmo que tal implique a denúncia de acordos bilaterais ou do  âmbito da risível agremiação PALOP. É de todo o bom senso uma avaliação prévia dos motivos,  condições e viabilidade de acolhimento de quem se apresenta numa fronteira. Não é possível que  entrem livremente em Portugal indivíduos com cadastro activo ou candidatos a isso, não é  humanamente aceitável abrir as portas a alguém sem solução de acolhimento. Tem de ser possível  saber o registo criminal de todos os oriundos de países onde esse registo é acessível. E a ausência  de uma solução de acolhimento implica a monitorização da situação social – um sem abrigo não  tem melhor falta de abrigo em Portugal do que no seu país de origem.

A nacionalidade portuguesa é uma condição que deve recuperar um mínimo de dignidade. Não  pode continuar a ser concedida de modo automático a qualquer estrangeiro como se fosse um saco  de plástico com bolachas-maria, uma lata de atum e uma garrafinha de água ofertado à entrada por  Vilar Formoso. Durante um tempo a definir cuidadosamente (1, 2, 5 anos?) a situação de um  recém-chegado para residência e trabalho deve ser a de acolhido não nacional. Deve poder usufruir  do direito ao trabalho e de todos os benefícios sociais que se tornem necessários durante a sua  permanência, mas não de benefícios que configurem uma situação de emigração por motivos de  saúde. E, muito mais importante, durante o seu período de acolhimento sem nacionalidade, é  susceptível de repatriamento por ofensa às leis portuguesas.

São controversas estas medidas regulatórias, como serão quaisquer outras, que as há de haver bem  melhores. Não teriam qualquer utilidade se não fossem controversas. Ideias não controversas não servem para discussão. Servem, como todas as que são expendidas pelos bondosos sociólogos,  tutores, vigilantes, tios e manas da esquerda, para evitar a delimitação dos problemas e não os  discutir, servem para manter a combustão social e dar tempo ao amadurecimento das condições  para a grande explosão revolucionária. Ideias não controversas servem, como as que são adiantadas  pelos funcionários do centro político, sonolentos e previdentes, para apaziguarem todos – incluindo  o deus das chuvas, a quem pedem pingos suficientemente afastados para poderem passar no meio  sem se molharem.

Outras ideias agradariam mais à extrema-direita, que confia preferencialmente numa estratégia  musculada, repressiva desde já e fortemente regulatória depois – ideias perigosas, porque  precipitariam o momento explosivo, aquele que a extrema-esquerda quer diferir para o momento  certo, e semeariam o grande problema em pequenos problemas com potencial de crescimento.

Não é invejável a situação de ninguém nestes precisos dias. Os homens e mulheres que vivem nos  bairros onde a violência chegou e que vêem piorar uma qualidade de vida que já não era boa. Os  polícias, que não têm violençómetros nem bodycams e a cada momento, de frente para um  conhecido que lhes resiste, sentem medo e hesitam sobre como aplicar a competência que têm e  sobre a qual os tudólogos, tudólogas e tudólogues, opinam na televisão. O governo, que não tem  uma estratégia firme – seja para deixar arder ou apagar com decisão todo o tipo de incêndios – que  optou por aguardar o cansaço de todos, que dá ralhetes, assinala que está muito zangado, e não  descarta a possibilidade de algumas fogueiras poderem ser aproveitadas para o São Martinho. Eu  próprio, que me incomodo com pretos e brancos e não tenho cor, que conservo apenas os únicos  valores que em todos os tempos foram os valores do futuro, que temo pelo destino da pátria e não  cultivo o patriotismo.