Em 1984 o na altura assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, António Almeida Costa, escreveu um artigo sobre o então novo regime jurídico do aborto. É um artigo científico, com mais de quarenta páginas, onde o autor discorre sobre os vários aspectos da lei então aprovada.
Um dos pontos analisados é o aborto em casos de violação. São sete páginas, cheias de dados e fontes, onde António Almeida Costa aponta os argumentos contra e favor. É neste contexto que o autor refere o facto de ser raro que da violação resulte uma gravidez. E sobre isso apresenta dados de vários locais e apresenta hipóteses que possam explicar os dados disponíveis.
Foi este o ponto que Fernando Câncio escolheu para iniciar a sua campanha pública contra a cooptação de António Almeida Costa como juiz do Tribunal Constitucional . A jornalista faz uma operação de corte e costura reduzindo sete páginas de argumentos jurídicos a meia dúzia de linhas úteis para a imagem que quis criar sobre o potencial juiz conselheiro.
Seguiram-se quinze dias de campanha mediática contra António Almeida Costa. Vários órgãos de comunicação social repetiram a história de Fernanda Câncio, comentadores deram a sua opinião, chegando mesmo a haver partidos a comentar aquilo que é uma escolha exclusiva do Tribunal Constitucional.
Assistimos a uma campanha de comunicação nunca vista contra o potencial juiz conselheiro, numa clara tentativa de manipular a opinião pública contra António Almeida Costa.
Curiosamente ninguém refutou qualquer argumentos das tais quarenta páginas. Ninguém soube rebater os pontos apresentados pelo professor Almeida Costa. Tratou-se simplesmente de instigar o ódio contra uma pessoa de quem discordavam. O candidato proposto ao Tribunal Constitucional foi banido por delito de opinião.
Para Fernanda Câncio, e vários outros jornalistas como Mafalda Anjos ou Liliana Valente, António Almeida Costa não deve ser juiz conselheiro, não porque seja um mau jurista, mas porque discordam da opinião dele. E esse facto justifica promover uma campanha de linchamento mediático.
E o resultado é conhecido. O Tribunal Constitucional recusou cooptar António Almeida Costa. O que levou os jornalistas que “comandaram” esta campanha a congratular-se nas redes sociais por terem cumprido a sua missão de manter o Tribunal Constitucional puro. Aparentemente consideram que a sua missão não é informar o público, mas promover campanhas mediáticas para condicionar o mais importante tribunal do país.
E conseguiram. Ficou claro que, de hoje em diante, não será nomeado qualquer juiz conselheiro que não se submeta à ideologia de Fernanda Câncio, Liliana Valente, Mafalda Anjos e outros jornalistas. Depois da campanha vil contra Almeida Costa não restam dúvidas para qualquer jurista que atrever-se a ter uma opinião diferente destes jornalistas é arriscar ser queimado na fogueira da opinião publica.
O Tribunal Constitucional é o guardião da Constituição, do Estado de Direito, da Democracia. É legitimado para isso pela Constituição, tem formas de ser fiscalizado, os seus juízes obedecem a regras para serem nomeados. A partir de agora tudo isso caiu: quem decide que juízes podem ou não ser nomeados para o Tribunal são os jornalistas.
E isso é um perigo para a Democracia. Porque a legitimidade do Tribunal vem da própria Constituição. A legitimidade de Fernanda Câncio vem da Global Media. Assim como a de Liliana Valente vem da Imprensa e a de Mafalda Anjos da Trust in News. E com essa legitimidade, concedida por quem teve dinheiro para adquirir um grupo de comunicação, estas jornalistas montaram uma campanha para condicionar o mais importante tribunal do país.
Vejo muita gente a aplaudir o trabalho dos jornalistas que condicionaram o Tribunal, pelo simples facto que discordam da posição de António Almeida Costa. Aquilo que não repararam é que a partir de agora será simples para qualquer grande empresa ou para qualquer milionário condicionar o Tribunal Constitucional, ou qualquer outro dos tribunais superiores: basta ser dono de um órgão de comunicação social. Aparentemente essa é a única legitimidade necessária para condicionar a escolha de um juiz.
A derrota de Almeida Costa é a derrota do Estado de Direito. É a vitória daqueles que se consideram acima da Democracia. A partir de agora o guardião da Constituição já não é o Tribunal Constitucional, mas sim Fernanda Câncio e seus companheiros. Com a capitulação do Tribunal Constitucional ficou demonstrado que a Democracia pertence a quem tiver o poder de manipular a comunicação social. Foi a isto que tantos bateram palmas.
Jurista