Em Portugal, e um bocado por todo o hemisfério norte, o verão traz um evento pouco mediatizado, mas extremamente significativo para um público especializado: as ordenações de padres. Nem todas ocorrem entre Julho e Agosto, mas a sua maioria, por um conjunto de razões que, para este texto, pouco importam, acontecem durante estes meses do ano. Ainda assim, não deixa de ser significativo o paralelismo entre a renovação epocal oferecida pelo verão, e a renovação que, para cada Diocese, significa uma nova ordenação.
Por isso, importa pensar o que significa hoje ser padre. Era possível, neste contexto, desenvolver uma reflexão mais ordenada sobre o assunto, mas prefiro deter-me em aspetos mais prosaicos. Ser padre significa, hoje, saber que, muito possivelmente, o primeiro que se fará depois de “terminar o seminário”, é endividar-se para comprar um carro que aguente os milhares de quilómetros percorridos, por ladeiras e regos de água, para se chegar à última capela da aldeia onde já só vivem 10 pessoas. (Tudo isto porque o típico “bolinhas”, meio carro de seminarista, meio sucata herdada dos pais, não dá para percorrer as 9 paróquias de montanha, em segurança).
Ser padre é, por exemplo, saber que o currículo, os talentos ou as inclinações pessoais não são um talismã que livre quem quer que seja de “lavar as mãos na terra”, porque a prioridade não é a sua satisfação pessoal.
Ser padre é, também, estar disposto a entrar numa das muitas profissões sem sindicato, sem medicina no trabalho, e onde, segundo os estudos mais recentes noutras latitudes, a saúde mental é cada vez mais sinónimo de suicídio, burnout e depressão.
Ser padre é aceitar que, muito possivelmente, se viverá condenado à solidão e que qualquer gesto de amizade ou afeto poderá ser mal interpretado, porque o padre que sai à noite com os amigos é pouco sério, e o que está sempre metido em casa é antipático.
Ser padre é a única profissão do mundo a quem se tornou aceitável um apresentador de televisão perguntar, como aconteceu há muito pouco tempo, e em direto, se o entrevistado em causa “se masturba”, sem que isso signifique uma grave intrusão da vida íntima, o que não deixa de mostrar como o clero acaba por ser alvo de uma espionagem permanente da intimidade e que, não raras vezes, termina em chantagem emocional e afetiva, como mostrou, mesmo que com insuficiências, Marco Marzano no livro A Casta dos Castos.
Ser padre é, também, ver o seu nome associado, em caixas de comentários – incluindo provavelmente na deste artigo –, sem qualquer pejo, aos seguintes ápodos: pedófilo, chulo, vigarista, ladrão, criminoso e mentiroso. Ser padre é, de igual forma, ter aprendido, ou ter adormecido a aprender, 3 línguas antigas, 2 alfabetos novos, ter conhecido, além das disciplinas de teologia, a história da filosofia e a história universal, para lá de toda a formação musical, metida no meio das horas livres após a faculdade, o que torna o seminário e o curso de Teologia algo mais do que uma formação técnica para aprender a “comer hóstias” com classe.
Alguns destes aspetos são comuns a outras “profissões”? Sim. Há manifestações de imperfeição no Clero, que ultrapassam, até, a mais basilar legalidade? Sem dúvida. Na verdade, há, aliás, quem, e bem, distinga entre o padre e o padreco. Mas este momento sindical também é necessário, para repor alguma equidade no tratamento deste assunto.
Por isso, afirmei que os padres são uns palhaços. Compete-nos agora decidir de que maneira o somos. Se o somos no pior sentido da palavra, e vivemos o ministério como uma condenação. Ou se o vivemos, na medida em que o palhaço é aquele que é capaz de rir de si próprio e encontrar força na sua própria fragilidade. Palhaços tais como os bobos da corte, na idade média, que renunciando a lugares de poder se tornavam mais livres. Palhaços, porque optam por uma itinerância e por uma pobreza incompreensível. Palhaços, porque continuam a achar que, mesmo quando se centraliza mais o Estado, não deixa de valer a pena ir àquele pequeno lugar onde já não há médico nem professor. Palhaços, porque mesmo que algumas instituições públicas façam a vida negra às instituições de solidariedade social geridas pelas paróquias, não se pode desistir de dar a vida para que haja uma mínima rede de cuidados, onde o Estado não chega. Palhaços, porque passam a vida a falar de uma antilógica, que é a lógica do Evangelho. Palhaços, porque são olhados com altivez, como se tivessem saído de um livro do Eça ou do Camilo. Palhaços, porque não falta quem veja no facto de o serem, algo menos nobre.
O Clero tem problemas? Tem. E um padre será o primeiro a dissertar sobre eles demoradamente, sem nada lhe ter sido perguntado neste sentido, mesmo que não conheça os trabalhos de Donald Cozzens ou tenha lido George Bernanos.
A Igreja tem disfuncionalidades? Seria uma brutal cegueira defender que não. Mas nenhuma delas se resolve partindo do princípio que “padres, bispos e freiras” são um bando de malfeitores. É verdade que o Clero não está acima da lei, mas também não está abaixo. (Tomando aqui lei num sentido mais vasto do que a literalidade).
Se há quem idolatrize as capacidades do Clero, há quem também as despreze, pelo mesmo motivo que os primeiros as veneram: o facto do alvo da análise ser padre. Porque o anticlericalismo cego – tantas vezes tido como intelectualmente sofisticado e superior – é tão nocivo, tóxico e fundamentalista, como a beatice mais medieval. E no meio disso, o que se nega é a possibilidade de se conhecer a complexidade de circunstâncias em que o Clero se vê envolvido.