O liberalismo não é o mercado. Parece, mas não é. O liberalismo é uma teleologia e uma moral. Uma teleologia porque entende que o fim do ser humano é a felicidade individual, vista como utilidade. As nossas acções são determinadas por tudo aquilo que é útil para os nossos fins, nem poderia deixar de ser assim pois tudo o resto seria metafísica. Ao mesmo tempo, como não fica pelo umbigo de cada um, é uma moral pois que faz coincidir a felicidade geral com a soma das felicidades individuais.

Ora, como, com toda a probabilidade, a felicidade de todos não é exequível, basta-se com a felicidade do maior número possível. O liberalismo é um utilitarismo hedonista, um relativismo ético e ao mesmo tempo um nominalismo absoluto. Mede o valor das acções humanas pelo seu resultado e é assim tendencialmente indiferente a considerações morais. Não lhe interessa o significado das acções; apenas a utilidade que delas resultou na perspectiva de quem as empreendeu e delas beneficia. O aumento da felicidade individual de alguns, mesmo que poucos, acabaria, porque vivemos em sociedades interdependentes, por contribuir para o aumento da felicidade geral, como na célebre fórmula de B. de Mandeville; vícios privados, públicas virtudes. Se a felicidade individual é o fim, daí decorre necessariamente que o aumento da felicidade de cada um faz quantitativamente crescer a felicidade de todos segundo uma lei da aritmética.

Esta posição é insustentável porque tem da felicidade uma visão apenas mecânica. Dir-se-ia que o liberalismo aplica à economia a segunda lei da termodinâmica ou da homeostase; o enriquecimento de um contribui para o enriquecimento de todos como se fosse para eles transferido a partir de uma fonte de energia mais quente, tal qual a energia térmica.

E não há juízos de qualidade, salvo para J. Stuart Mill; tanto faz que o acréscimo de felicidade individual seja de um escritor depois de publicada uma obra-prima ou de uma mãe pelo sucesso escolar do seu filho, como de um hooligan cheio de cerveja satisfeito pela vitória do seu clube.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As realidades prosaicas da concentração da riqueza, da pobreza e do sofrimento de quem ficou pelo caminho são-lhe indiferentes e mais, não fazem parte da equação. O sofrimento de alguns, talvez muitos, é um resíduo a pagar pelo aumento do bem-estar do maior número possível. É como nos filmes do Chuck Norris; collateral damages.

O liberalismo é o resultado da opção por um modelo abstracto de racionalidade da decisão económica que seria assim perfeito. O problema é que os seus adeptos só vislumbram o modelo e não a realidade.

É bom que os adeptos do liberalismo radical, que parecem vir agora à tona, tenham consciência disto; se afirmam, e com razão, que o objectivo é o bem-estar e se confirmam que este não tem de ser igual para todos posto que alguma desigualdade tem a sua razão de ser e é até proveitosa para a comunidade, devem admitir que o meu bem-estar depende do dos outros e mesmo mais, o bem-estar de cada um é tanto maior quanto é o de todos. Ora, isto implica um critério de equidade na repartição do bem-estar, não apenas uma soma de grandezas. Altruísmo em vez de egoísmo.

Para o liberalismo a moral é apenas a privada do business, o que é tão falso quanto a concepção de moral do bolchevismo e do fascismo para os quais a moral é colectiva e se reduz ao que serve o partido investido de um desígnio transcendente ou o estado investido de outro (houve quem preferisse a «nação» ou a «pátria»). Basta ler J. Bentham ou então aquele texto infame do Trotsky intitulado a nossa moral e a dos outros para ficar com arrepios, e os brutais discursos do Mussolini antes da invasão da Etiópia não lhe ficam atrás. Tudo goodfellas. O socialismo bolchevique (que foi o único que existiu porque não podia ter existido outro e se tivesse existido ainda seria pior) e o fascismo geraram a escravatura e a brutalidade porque desprezaram a liberdade.  Mas a liberdade por si só gera o privilégio e a injustiça. Já aos quinze anos dizia mais ou menos isto num artigo para o jornal do liceu (então) D. João III em Coimbra, e não mudei nada.

Ora, coisa completamente diferente do liberalismo é o mercado. É preciso acordar para a realidade e esta chama-se mercado. Liberalismo e mercado nem sempre coincidem. Parafraseando o nosso Eça de A Capital, quando ainda tinha preocupações realistas, é preciso arredar o manto diáfano da fantasia para vermos a nudez crua da verdade. A fantasia chama-se liberalismo e a verdade chama-se mercado. Vejamos; o liberalismo é um modelo teórico abstracto, mas o mercado é uma realidade humana. É uma instituição e, como todas as instituições humanas, é um produto histórico, cheio de contactos «intersubjectivos», como se diz agora, e, portanto, imperfeito, muito imperfeito. Pressupõe obviamente a liberdade individual, mas está sempre e necessariamente situado num determinado contexto social e político. Tem por pressupostos a propriedade e a livre iniciativa privadas mas estas são apenas a sua razão necessária. Não chegam, porque não são razão suficiente. Os filósofos medievais conheciam muito bem esta diferença.

É indiscutível que o mercado permite a circulação da informação sobre quem quer comprar e o quê e quem quer produzir e o quê. É insubstituível como meio de fazer circular a informação e as consequentes preferências e decisões económicas. Orienta-as sem coacção e desperdícios. Como modelo de decisão económica o mercado não tem nem terá rival. Liberdade, racionalidade, democracia.

Mas como instituição humana que é, o mercado defronta-se com graves problemas de funcionamento. Pode funcionar melhor ou pior. Para funcionar bem, nada de abstracções, são precisos é resultados. E, de facto, o mercado nem sempre funciona bem e os resultados sofrem com isso. Como fruto da acção humana que é, tem falhas e disfunções. E por causa delas o mercado fica longe da perfeição pelo que é indispensável corrigi-lo. É, de resto, o que sucede com todas as instituições humanas como, p. ex, a igreja, a escola, a monarquia, a família, o casamento (seja com quem for), a adopção e outras.

O mercado não gera automaticamente o bem-estar de todos. Permite o sucesso de muitos e, assim sendo, contribui para a felicidade e bem-estar deles e de outros tantos, mas deixa uma percentagem da população de fora. Ainda assim, o nível de informação, esclarecimento, riqueza e participação que o mercado proporciona é muito maior do que o que pretensamente poderia reivindicar qualquer outro modelo de decisão económica. Dele se pode dizer o mesmo que Churchill dizia da democracia; «é certamente um sistema com defeitos, mas os outros ainda têm piores». Não chega à perfeição.

É aqui que entra o poder político e a autoridade legítima de que dispõe de modo a lidar com essa realidade natural que é o mercado. Começa aqui o Estado Social.

No contexto do actual capitalismo, globalizado e ferozmente competitivo, coloca-se o problema de saber como é que o Estado deve intervir e até onde. Que intervenção estatal é a adequada? Não é certamente o dirigismo nem o intervencionismo, tão do agrado da Parte II da Constituição portuguesa e, muito menos o estúpido e imaginário planeamento económico, destruidor de iniciativas e conducente ao marasmo tecnológico e ao desperdício, como os países do leste europeu logo compreenderam mal desapareceu o malfadado muro «antifascista» de Berlim. Há que contar com o mercado como com a sucessão das estações do ano e com a mudança de idade. Até a esquerda portuguesa, depois de um esforço que durou gerações, acabou por compreender, salvo um núcleo de australopitecos, que não há alternativa ao mercado.

A solução é a regulação. É a única modalidade de intervenção estatal na economia que sabe respeitar o mercado. Funciona como um certificado de seguro do mercado. Corrige-o sem o condicionar, encaminha-o para melhor funcionar, tira-lhe os escolhos disfuncionais e burocráticos do caminho e satisfaz certos interesses gerais, sempre na primeira linha das suas preocupações. Sobretudo, não pretende transformar o mercado noutra coisa que é como quem diz, aproveita a regulação que o mercado já faz de si próprio através das suas leis de funcionamento e (re) regula-as em prol de valores mais gerais e colectivos. A ordem do mercado é complementada pela ordem do interesse geral.

A questão está em saber se a regulação deve ser feita apenas pelo governo, mesmo que através de entidades ditas independentes mas que, cá no país, verdadeiramente não o são, ou se se deve confiar na autorregulação privada feita por entidades privadas como sucede nos países mais liberais. A autorregulação também existe entre nós mas apenas marginalmente, como não podia deixar de ser.

A regulação estatal põe o problema da sua governamentalização de que o nosso país é um exemplo e apenas disfarça o dirigismo estatal. O que se passou no sector eléctrico só foi possível porque a entidade reguladora estava vinculada ao governo e fingiu que não via pelo que deixou as mãos livres a uns malandros que souberam tirar partido. Por sua vez, a autorregulação privada também tem problemas. Permite a captura do regulador pelos interesses dos regulados mais influentes. Não me esqueço que a Associação Portuguesa de Bancos considerou determinado indivíduo, agora, finalmente, a contas com a justiça, o «banqueiro do ano» pouco antes da derrocada do banco que dirigia, o que é sintoma da pouca confiança que merece e de que a entidade reguladora, o Banco de Portugal, demorou muito tempo, demasiado tempo, a tomar as medidas que devia ter tomado muito antes.

Que fazer então? Regular, obviamente, mas tendo sempre em consideração que, por um lado, o mercado é já por si uma ordem e não um caos, ao contrário do que pensava o vão marxismo, e que para a regulação obter resultados deve ser bem conhecida e respeitada e, por outro lado, que o objectivo não é substituir o mercado mas sim aperfeiçoá-lo. O mercado  é um mecanismo demasiado racional e eficaz para que possa ser abandonado só aos interesses privados que o podem desfeitear e perverter. Deve ser acarinhado e aperfeiçoado pela autoridade de modo a ser colocado, parcialmente embora, ao serviço dos interesses da colectividade, não funcionando apenas de acordo com os interesses dos particulares, mas aproveitando sempre do mercado o que tem de melhor, proveitoso e genuíno, como fazem os educadores modernos, desde que conhecem o Emílio do Rousseau. É esse o difícil desafio da regulação. A mão da autoridade não é invisível; é bem visível.