Em 1990, Juan J. Linz, um dos maiores cientistas políticos de sempre, publicou a primeira versão de um dos trabalhos mais discutidos nas últimas três décadas da disciplina. Nesse trabalho, Linz elencava um conjunto de características dos sistemas presidencialistas que poderiam torná-los mais propícios à erosão, e eventual queda, da democracia. Originalmente pensado para o contexto da América Latina, a vitalidade dos argumentos de Linz ganhou novo fôlego com o bloqueio institucional nos Estados Unidos nos últimos anos, em particular com a polarização e alinhamento partidário no Congresso. Os resultados das eleições francesas do último Domingo tornaram claro que as previsões mais pessimistas sobre o presidencialismo estão agora presentes num dos países mais importantes da União Europa.

A característica negativa mais importante que Linz identifica no presidencialismo que se torna mais relevante para perceber o caso francês é o carácter winner-takes-all da presidência. O cargo unipessoal faz com que a coligação vencedora controle na totalidade o poder executivo, especialmente num caso de governo unificado, no qual a coligação do presidente controla ainda a Assembleia Nacional. Num país tão claramente fragmentado como França, este tipo de organização política torna mais difícil a acomodação democrática de diferentes correntes de opinião. Num sistema parlamentar, por exemplo, as várias correntes políticas com representação política substancial teriam oportunidade real de formar coligações – no governo ou no parlamento – através das quais conseguiriam influenciar as políticas públicas.

O exemplo de Jean-Luc Melenchon ilustra bem este dilema. Os mais de 7 milhões de eleitores que votaram no candidato de Esquerda não terão a sua voz representada no executivo francês, nem qualquer hipótese de influenciar as políticas que Macron ou Le Pen implementarão ao longo dos próximos anos. Ao invés de um sistema parlamentar, no qual o parlamento é a base da qual emana o executivo, fomentando coligações móveis em função das políticas públicas, Macron ou Le Pen estarão apenas vinculados à coligação que os elegerá. Na prática, os eleitores de esquerda estão condenados a votar num candidato no qual não se revêm, sem extraírem concessões políticas por esse mesmo voto.

O carácter maioritário do presidencialismo francês é ainda exacerbado por duas características fundamentais. Em primeiro lugar, a realização de eleições legislativas no mês seguinte às presidenciais. O calendário induz a criação de uma maioria legislativa, dando fortíssimas vantagens ao partido do presidente. Em vez de ser um contrapoder que fiscaliza o poder executivo, a Assembleia Nacional torna-se, na prática, uma câmara de ressonância da Presidência. Veja-se, por exemplo, o modo como, em 2017, Macron criou, literalmente do nada, um movimento político que, sem qualquer implantação no terreno, conseguiu uma maioria absoluta no parlamento graças ao momentum que o presidente havia conseguido nas eleições presidenciais.

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Em segundo lugar, o sistema eleitoral francês, maioritário e a duas rondas, contribui ainda mais para que a sub-representação de correntes minoritários. Nestes sistemas, os dois candidatos mais votados são apurados para uma segunda ronda, na qual é decidido o vencedor. Apesar da virtude de ter mantido a extrema-direita com pouca representação parlamentar, este sistema não é conducente à criação de um parlamento que represente a heterogeneidade política, económica e social da sociedade francesa, contribuindo, assim, para afirmar o domínio maioritário de um ou dois partidos.

As instituições francesas estão, assim, a conduzir a uma sociedade cada vez mais polarizada, na qual os ganhadores políticos controlam os processos de forma quase absoluta e os perdedores têm pouca voz institucional. Curiosamente, existe ainda uma clivagem na política francesa que pode estar a mitigar os excessos maioritários do Presidente e seu partido. No fundo, quase podemos utilizar a velha máxima Chinesa de ‘um país, dois sistemas’. Enquanto a eleição presidencial, e as legislativas que lhe seguem, são fortemente nacionalizadas, com a figura do presidente a ser fundamental a definir quase todos os equilíbrios de poder, o poder dos partidos clássicos mantém-se forte ao nível subnacional. Ouvimos nos últimos dias dizer que Socialistas e Republicanos perderam praticamente todo o poder. As eleições regionais de 2021 pintam um quadro um pouco diferente. Das 17 regiões metropolitanas, os Socialistas ganharam 8, os Republicanos 7 e o partido de Macron apenas 1. O velho bloco Socialista e Gaullista ganhou cerca de 60 por cento dos votos. O mesmo cenário é visível nas eleições locais de 2020. Nas cidades com mais de 70.000 habitantes, os Republicanos ganharam 24 câmaras, os Socialistas 19, incluindo Paris, os Verdes 9 e o partido de Macron apenas 2.

Chegados aqui resta a pergunta de um milhão de dólares: assumindo que Macron ganha as eleições, o que me parece, de longe, a melhor solução para França e para a Europa, que acontecerá dentro de cinco anos? Macron mostrou como as características institucionais do sistema político francês podem ser exploradas desde que estejam reunidas um conjunto de características: uma figura carismática, bem financiada por privados, consegue moldar de cima para baixo o sistema político, chegando à presidência e, a partir daí, ganhar uma maioria relativa. Ao fazê-lo, Macron conseguiu destruir os partidos tradicionais ao nível nacional que, nesta primeira volta, não foram além dos 7 por cento. A emergência de figuras quase messiânicas como barreira à extrema-direita é fortemente contingente ao momento político e pode esboroar-se de um dia para o outro, por exemplo, com um escândalo sexual (vide DSK). O que acontecerá em 2026 se o sistema político francês não conseguir produzir – vindo do nada – um sucessor de Macron?