A presente crónica é dirigida aos pais que não compreendem os danos causados pela presença omnipresente dos telemóveis na vida dos seus filhos. E à sociedade em geral, que ignora (ou finge ignorar) que o impacto dos telemóveis nas crianças, adolescentes (e até adultos) não é igual para todos, perpetuando desigualdades.

Ao longo dos últimos anos, o telemóvel transformou-se numa extensão do corpo de jovens (e menos jovens). Enquanto ferramenta de comunicação este tipo de dispositivos é desenhado para funcionar como facilitador (“interface”) de uma panóplia de gratificações instantâneas que, embora aparentemente atraentes, são profundamente nocivas. E se podemos assumir que os adultos deverão ter o discernimento para avaliar os níveis de consumo e que tipo de relação devem manter com os equipamentos e tudo o que eles atualmente possibilitam (algo que merecerá análise numa futura crónica), no caso das crianças e adolescentes é particularmente grave a ingenuidade com que as expomos a estímulos massivos, continuados e permanentes, de uma significativa violência.

Não obstante o tema ser complexo, ele pode ser simplificado nas suas principais causas e consequências, para ser percebido por qualquer interlocutor comum.

O alinhamento de interesses entre “smartphones” e empresas de tecnologia permite que estes equipamentos sejam hoje o mecanismo ideal para gerar de forma massiva e continuada os estímulos necessários para libertar uma substância química denominada “dopamina”. Explicando: o uso constante de dispositivos digitais facilitou o acesso a redes sociais, jogos de diversão, lojas online e plataformas de apostas. O que têm todos estes serviços em comum? Todos têm no cerne da sua conceção e funcionamento uma ambição: estimular a libertação de dopamina, o neurotransmissor que está diretamente ligado ao prazer imediato e à recompensa. Cada notificação, cada “gosto” ou mensagem recebida, cada encomenda efetuada ou colocada no “carrinho de compras”, cada fase de um jogo que vencemos (ou até perdemos), cada aposta feita, gera uma descarga de dopamina, criando um ciclo de gratificação rápida. Este ciclo, no entanto, tem vários custos: desde logo, à medida que vamos obtendo gratificações, o nosso cérebro necessita de estímulos maiores (leia-se, maiores descargas de dopamina) para atingir o mesmo nível de satisfação ou prazer; e ao habituar o cérebro a estas recompensas imediatas, crianças, adolescentes (e até adultos) perdem progressivamente a capacidade de se concentrarem em tarefas mais demoradas e complexas, como o estudo, a leitura de um livro, a análise de um problema não evidente. Com o tempo, crianças, adolescentes e até adultos deixam de conseguir projetar atividades ou organizar recompensas mediatas – as quais, frequentemente, implicam prescindir das recompensas imediatas ou “sacrifícios”. Por fim, o excesso de libertação de dopamina conduz a estados crescentes de frustração, ansiedade, compulsão ou irritabilidade que destroem o equilíbrio emocional e a relação com os outros (desde os que nos são próximos até ao mundo em geral, como facilmente se perceciona, hoje, em redes sociais como o Facebook ou o X). Não é exagerado dizer que graças à exposição atual aos telemóveis e suas adições, as democracias se estão a tornar ditaduras de “junkies”, condicionadas pelo tráfego de estímulos digitais à dopamina.

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A existência de um polo de estímulos imediatos, continuados e persistentes, que atua como uma extensão do nosso corpo (a que chamamos “telemóvel”) é especialmente preocupante em contexto escolar, pois vai concorrer diretamente com o que é necessário para uma sã aprendizagem. A apreensão de conhecimentos requer esforço, paciência e foco, qualidades que são minadas pela presença omnipresente do telemóvel (na escola, e fora dela). Se um estudante alterna entre prestar atenção às aulas e “checkar” o telemóvel, o que vai acontecer é que rapidamente vai perder capacidades para reter informações, concentrar-se e desenvolver um pensamento estruturado. São vários os estudos que, pelo menos desde os anos 60 (altura em que o psicólogo Walter Mischel da Universidade de Stanford começou a estudar os fenómenos de gratificação diferida em crianças) nos convidam a adiar a exposição a estímulos imediatos como forma de reforçar a resiliência e a autonomia individuais. No que diz respeito aos telemóveis, em concreto, não faltam estudos que demonstram que as escolas que retiraram os telemóveis do seu ambiente viram o rendimento académico melhorado, principalmente entre os alunos de menor desempenho (junto, aqui, um dos mais interessantes, conduzido por Louis-Philippe Beland e Richard Murphy e publicado pela London School of Economics em 2015).

E é precisamente aqui que reside um dos pontos mais preocupantes desta questão: o uso de telemóveis nas escolas não afeta todas as crianças de igual forma. As crianças de famílias mais pobres são potencialmente mais vulneráveis aos malefícios do uso massivo de telemóveis. Desde logo, porque a pobreza está historicamente associada (entre outros aspetos) à preferência por recompensas imediatas, algo que é hoje agravado com o recurso intenso a dispositivos que oferecem uma gratificação constante. Acresce que as crianças das famílias mais abastadas têm potencialmente acesso a rotinas mais estruturadas: aulas de música, desporto, explicações e outras atividades extracurriculares que preenchem o seu tempo de forma útil. Estas atividades não só limitam o tempo de ecrã, como promovem o desenvolvimento de competências cognitivas, sociais e emocionais. Para as crianças de famílias mais pobres, no entanto, o cenário é diferente. Muitas vezes, estas não têm acesso a atividades extracurriculares e o tempo livre é ocupado com o telemóvel ou consolas de jogos. Este “vazio” do tempo livre é preenchido com distrações e alienações que perpetuam o ciclo de desigualdade. Ao invés de passarem o tempo a desenvolver competências ou a melhorar o desempenho académico, cada vez mais as crianças, adolescentes (e também adultos) mergulham num ciclo de dopamina e distrações digitais. No caso de crianças, porém, que já enfrentam múltiplas barreiras ao sucesso académico, em que o telemóvel não é apenas uma distração, mas um obstáculo real à sua capacidade de superar as desigualdades sociais, é urgente tomar medidas que salvaguardem o seu futuro.

Retirar os telemóveis do ambiente escolar (e não escolar) não vai ser fácil, e vai encontrar inúmeras resistências, em especial quando começar a abranger adolescentes de outros ciclos de estudo com graus de dependência já elevados (e em muitos casos, irreversíveis). A solução encontrada baseada não na proibição, mas na recomendação, é acertada, pois mais do que proibir, precisamos de cidadãos conscientes da necessidade de autorrestrição e de um maior equilíbrio na relação com tecnologias que nos estão a devorar – às crianças, aos adolescentes e, já agora, a muitos adultos (tema a recuperar em crónicas futuras).