No passado dia 6 de outubro, na cidade espanhola de Granada, reuniu-se o Conselho Europeu em modo informal e um dos pontos em agenda foi a adesão da Ucrânia à União Europeia. Em carta dirigida aos membros do Conselho, o Presidente Charles Michel lembrou a próxima Agenda Estratégica 2024-29. Escreveu ele:

Fomos o primeiro continente a definir a nossa meta de neutralidade climática até 2050, e vários outros seguiram as nossas pisadas. Estamos, assim, a abrir o caminho para a ecologização das nossas economias. A UE superou o desafio da COVID-19, protegendo os seus cidadãos e disponibilizando vacinas inovadoras ao resto do mundo. Adotámos um plano de recuperação ambicioso que reforçou a confiança e consolidou as nossas economias, tornando-as mais resilientes e acelerando simultaneamente as nossas transições ecológica e digital. No Porto, em 2021, reafirmámos a nossa ambição de construir uma Europa social. Por fim, face à guerra brutal da Rússia contra a Ucrânia, demonstrámos a nossa unidade e inabalável determinação.

Contudo, a União Europeia enfrenta desafios consideráveis, tanto a nível económico como geopolítico. À medida que o nosso mundo evolui, está a tornar-se mais instável e complexo, o que nos obriga a reforçar a nossa ambição estratégica. Que tipo de potência geopolítica e económica queremos ser a longo prazo, com possivelmente mais de trinta Estados-Membros? Para defender as nossas democracias e os nossos valores e garantir uma paz e prosperidade duradouras em benefício dos nossos cidadãos, a União Europeia tem de dispor de orientações e prioridades políticas gerais.

Cabe-nos defini-las em quatro grandes vertentes: consolidar a nossa base económica e social (transições ecológica e digital, competitividade, inovação, saúde); dar resposta ao desafio energético; reforçar as nossas capacidades de segurança e defesa; e aprofundar o nosso diálogo com o resto do mundo. É também imperativo reforçar a nossa abordagem global em matéria de migrações. Estes são apenas alguns dos temas que desenvolveremos. E as eleições europeias oferecerão aos cidadãos europeus uma oportunidade para desempenharem plenamente o seu papel nestes debates cruciais para o nosso futuro comum.”

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Dito isto, o período que decorre até às próximas eleições europeias de junho de 2024 parece-me crucial para definir os grandes objetivos e prioridades e uma metodologia de negociação em relação a duas importantes questões que, doravante, decorrerão em paralelo, a saber, a reforma da arquitetura institucional e orçamental da União (a polity e a policy europeia) e as negociações de adesão dos países candidatos ao alargamento, bem como, as reformas internas que eles deverão empreender para esse efeito. Vejamos muito esquematicamente alguns dos tópicos mais sensíveis nesta matéria.

A União Europeia assenta em valores democráticos fundamentais, mas estes valores estão a ser atacados de forma cada vez mais insidiosa e violenta, por exemplo, a desinformação nas redes sociais, os ataques informáticos a infraestruturas críticas, a utilização da inteligência artificial para fins e objetivos muito discutíveis e com consequências que ainda não podemos compreender plenamente; a regulamentação e regulação destas áreas são matérias muito sensíveis e críticas que importará acautelar tanto dentro como fora da União.

As incógnitas da geopolítica mundial – as nossas relações com os EUA, a China, a Rússia, o Médio Oriente – voltam a colocar o alargamento no centro dos nossos debates. Qualquer episódio ou acontecimento mais surpreendente neste quadrilátero de relações obrigará a União Europeia, muito provavelmente, a rever a sua estratégia negocial porque muda a posição relativa de cada ator no cenário internacional. Refiro, por exemplo, uma mudança inusitada na política externa norte-americana após as eleições presidenciais de 2024, o prolongamento da guerra na Ucrânia e a sua destruição sistemática ao longo da década, o envolvimento direto destas potências nas guerras do Médio Oriente, um ataque da China a Taiwan ou a utilização de armas nucleares por qualquer um deles. Em face destas ocorrências eventuais é todo o processo de alargamento que fica posto em causa, bem como a nossa capacidade efetiva de absorver todos estes efeitos cruzados.

Nunca um país em guerra aderiu à União Europeia, mas o ritmo da guerra determinará o ritmo do alargamento; reunidos em Granada no passado dia 5 de outubro no âmbito da Comunidade Política Europeia (CPE) os oito países candidatos – Albânia, Bósnia-Herzegovina, Moldova, Montenegro, Sérvia, Turquia (oficialmente congelada), Ucrânia – pediram uma abordagem mais flexível, porque todos eles sofrem já de fadiga política e negocial; com efeito, os múltiplos focos de guerra e a vulnerabilidade geopolítica da maioria destes países não parece ser compatível com a abordagem clássica dos méritos próprios e o exemplo da Turquia paira pesadamente sobre todos eles.

A data de 2030 como limite simbólico para o fecho do alargamento e o chamado paralelismo adequado entre as reformas europeias necessárias e as reformas internas nos estados candidatos, apesar de compreensíveis, podem revelar-se contraproducentes e constituir-se num fator de pressão relativamente pesado. Como nos ensina a matemática, quando o número de incógnitas é superior ao número de equações o sistema é indeterminado e este parece ser o estado atual da União Europeia. Assim, e tão breve quanto possível, o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu deverão preparar o guião de reforma da sua arquitetura institucional e orçamental para estarem prontos e prevenidos contra uma séria eventualidade, qual seja, um aumento substancial da tensão geopolítica na fronteira leste e sul da União. Nesse contexto, a adesão in extremis de uma parte importante dos estados candidatos pode ser precipitada e realizada em condições excecionais de grande flexibilidade e diferenciação político-institucional e político-orçamental.

Tal como disse o primeiro-ministro português em Granada, a arquitetura institucional da União deverá ser uma espécie de edifício multifunções assente em fundações sólidas que são os nossos valores comuns, o mercado interno e as quatro liberdades fundamentais, mas suficientemente aberto para acolher no seu seio diferentes posições em matéria de Schengen, zona euro, segurança e defesa e migrações, entre outras. Esta geometria variável abre também a porta para mais procedimentos de decisão por maioria qualificada e não deixa bloquear as negociações de adesão e a revisão das políticas.

Finalmente, o balanço entre recursos e políticas numa União Europeia com 35 estados-membros precisa de ser revisto e antecipado. Do lado dos recursos, estão em jogo, essencialmente, uma nova fiscalidade europeia, a união bancária, o mercado único de capitais e a mutualização da dívida conjunta. Do lado das políticas europeias, a revisão da PAC e da Política de Coesão, uma nova Política Comum de Segurança e Defesa e também vários instrumentos de transição em matéria de redistribuição de fundos europeus que salvaguardem a equidade de todo este exercício de transformação estrutural.

Nota Final

Na fase atual de forte contingência geopolítica, a União Europeia precisa ainda de um mecanismo comum de gestão de riscos sistémicos. Refiro, em primeiro lugar, as situações de crise no contexto do aumento dos riscos climáticos e ambientais. Em segundo lugar, o reforço da prontidão europeia em matéria de defesa e segurança e, correlativamente, o investimento em capacidades militares mediante o desenvolvimento da nossa base tecnológica e industrial. Em terceiro lugar, a luta contra os ciberataques e as ameaças híbridas e contra a manipulação da informação por parte de agentes estrangeiros em toda a União. Em quarto lugar, a regulamentação e regulação dos fluxos migratórios e o combate contra a criminalidade organizada nesta área. Por último, o reforço da cooperação e da ajuda ao desenvolvimento na fronteira leste e sul da União com vista a uma sólida política de vizinhança que previna e acautele a disrupção total em matéria de fluxos migratórios.

O alargamento é um investimento geoestratégico na paz, na segurança, na estabilidade e na prosperidade. O conjunto dos riscos referidos e a sua abordagem bem-sucedida só serão possíveis se a União puder dispor de todos os instrumentos necessários para garantir um crescimento sustentável e duradouro nesta década e nas próximas, sabendo nós que os critérios de sustentabilidade e inclusão social também geram novos custos de contexto e formalidade, muitos deles com repercussões assimétricas nos estados-membros com economias menos flexíveis. Ou seja, as grandes transições em curso requerem novos investimentos públicos estruturantes à escala europeia e nacional, em particular, a criação de uma base industrial e tecnológica europeia, que não se compadecem com a atual estrutura de políticas públicas e despesa comunitária cuja configuração dura há muitas décadas. E esta alteração estrutural de grande alcance é o maior desafio das próximas décadas até 2050, tudo isto num ambiente geopolítico muito contingente e que nenhum exercício de prospetiva é capaz de prever com segurança.