Nos últimos meses temos assistido no espaço mediático, mas sobretudo nas redes sociais, a um aumento exponencial do interesse pelas ideias liberais e a um incremento das pessoas que dizem identificar-se com o “liberalismo”. Tal movimento, positivo, porém, nem sempre tem emergido a partir de um saudável espaço de debate nem de um respeito pelos limites do que, em boa verdade, se pode reconduzir aos fundamentos liberais, limitado que está em impor liberalismos de cartilha, inequívocos, sem matizes, utilitaristas e conclusivos, que exigem respostas singulares para todos os problemas económicos e sociais a partir de uma única premissa: “a vontade do indivíduo”.

Reconheço que não tenho especial simpatia pela expressão, “indivíduo”, que a minha falecida avó utilizava para referenciar pessoas de índole duvidosa. Ora, por estes tempos, o “indivíduo” é apresentado recorrentemente como referência única de moralidade e a sua vontade canonizada como pêndulo de justiça. Há um deslumbramento “estético”, na linha do “jovem” apresentado por Kierkegaard, fascinado com as dúvidas que lança sobre as visões tradicionais da moralidade. Mas não apenas, na vanguarda liberal deslumbrada assistimos a uma repristinação do carácter redentor que o marxismo tinha no coletivo, agora reconduzido ao “indivíduo”, como se por artes mágicas, e simplesmente por aspiração da “vontade”, fosse possível ultrapassar todos os problemas económicos e sociais. A simplificação chega a ser ternurenta, não fosse perigosa, dada a forma autoritária como se apresentam “utilitarismos” como se fossem “liberalismos”, e uma mera licenciosidade não travestisse a liberdade, esvaziada que está de qualquer ónus de responsabilidade, num mundo onde, cada vez mais, tantos querem poder escolher – mas sem ter de viver o amargo das consequências. Lemos por aí soluções económicas que fazem tábua rasa do custo de oportunidade e que, na mera equação política ou monetária, são salvíficas, ignorando que é no trabalho, no esforço, e na exigência, e não na ideologia, que estão as raízes dos resultados. Não falta quem num fascínio com a tecnologia, quase fabiano, projete um homem novo, um “novo indivíduo” que nas suas purezas despreza as prioridades das pessoas reais que fazem parte das comunidades dos dias de hoje. Ou os que entendem que “a vontade do indivíduo” deve sobrepor-se a qualquer lei natural ou à própria validação moral que só o tempo possibilita.

É sabido que as redes sociais, pelas suas limitações e características, aceitam mal debates que não sejam superficiais e suportados em premissas categóricas, preferindo a lógica dialética e da afirmação dos contrários. São tribais, e nesse sentido, identitárias e patrocinadoras do mimetismo. Favorecem, ainda, o ruído do momento e o cancelamento dos que estarão fora do movimento pontual de tendência, muito mais enraizado numa decisão algorítmica do que numa validação moral polida pelo tempo. Ora, tendo em atenção que grande parte do interesse recente pelo liberalismo está muito ancorado nas redes sociais, não podemos ignorar a relevância do ambiente onde os temas estão a ser discutidos para perceber por que razão a deturpação das ideias liberais está tão avançada.

Numa perspetiva liberal clássica, o espaço público e político, para ser justo, deve ser plural, mas também capaz de projetar um consenso moral sobreposto entre doutrinas religiosas, filosóficas e morais, por vezes incompatíveis, mas ainda assim abrangentes e razoáveis face à ordem natural das coisas. Num outro sentido, podemos dizer que são profundamente iliberais as correntes ou ideias que nas sociedades ocidentais projetam valores políticos de uma forma tecnocrática, amoral, ou vanguardista, em rutura com o processo de validação que só o tempo patrocina (a este respeito, vale a pena ler a excelente crónica do André Abrantes Amaral, “Os liberais precisam de conservadores”, aqui no Observador). Por isso muitos defendem que ser liberal, mais do que perseguir uma grelha ideológica fechada (inexistente), se traduz numa atitude que, a partir de um quadro de valores de base (uma escatologia aberta e plurissecular que se expressa numa tradição de pensamento), procura encontrar equilíbrios na comunidade para que esta seja, o mais possível, pacífica e livre. Faço parte dos que recusam o liberalismo como ideologia, pensando-o a partir de uma tradição de pensamento, plural, construída ao longo dos séculos em distintos contextos culturais, que nos permite encontrar equilíbrios na comunidade política, tendo como eixo a promoção de valores fundamentais como a defesa da propriedade, do império da lei, da separação de poderes, da supremacia da lei natural, da liberdade, da iniciativa privada e da responsabilidade.

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Nos últimos meses assiste-se a uma crescente tentativa de cancelamento, nas redes sociais, de internautas que, em relação a temas ditos “fraturantes”, desconfiam das vanguardas e das teses que vendem que, nestas matérias, o debate liberal se esgota na “vontade do indivíduo” ou em simplificações que esvaziam qualquer debate moral que possa existir à volta de matérias que são, na sua essência, complexas e de humanidade, como presenciámos recentemente a propósito do aborto.

Ao longo das duas últimas décadas, em Portugal, afirmou-se um consenso amplo em relação à despenalização do aborto, no sentido em que se considera que, dadas as circunstâncias complexas em que a maioria dos abortos têm lugar, e não obstante as inúmeras tensões que o problema levanta, não se pretende ter mulheres colocadas sob o estigma judicial. A despenalização do aborto, no plano penal – reitero, que fez o seu caminho e cujo consenso e valor, hoje, quase não merece contestação – não significa que haja uma desvalorização social do mesmo, e que, no plano liberal, a autonomia da vontade da mulher, nas suas complexas circunstâncias, elimine ou anule totalmente o dano moral que tal implica na lei natural e naquele que é o seu elemento essencial, o direito à vida. É por existir uma tensão entre a autonomia da vontade da mulher, nas suas complexas circunstâncias, e a lei natural, na dimensão da defesa da vida, que quem é a favor de uma cultura de responsabilidade cívica e de humanidade não pode considerar que o debate político se esgota no plano penal, merecendo reflexão as circunstâncias económicas, sociais e de saúde pública que marcam o contexto do aborto.

Mas não apenas: ler, em nome do liberalismo, afirmações categóricas de fundamentos moralmente controversos (como a defesa do aborto muito para lá das 12 semanas, por “só a mulher poder decidir sobre o seu corpo”), acompanhadas de ataques violentos a quem procura encontrar consensos razoáveis e justificadores entre valores em conflito, é a meu ver um sinal de alerta preocupante. Não falta quem desvalorize o debate nas redes sociais, por considerar que as mesmas não refletem o pulsar da sociedade. Não comungo desta leitura, pois verifico que grande parte dos debates mantidos nas redes sociais funcionam como antecâmara, onde ideias, princípios e padrões são limados, dando lugar a justificativas que posteriormente migram para uma cultura pública que funciona por mera assimilação. Não será por acaso que, ainda recentemente, os que defenderam algo perfeitamente razoável – que, não obstante a despenalização e a legítima defesa da autonomia da vontade da mulher, o aborto é um problema de saúde pública –, foram alvo de inúmeros e virulentos ataques, muitos deles levados a cabo por pessoas que se pensam “liberais”.

Ser liberal significa, muitas vezes, viver assaltado pela dúvida, ser acusado de não ter a clarividência das soluções fáceis e translúcidas. Não significa, sequer, prescindir das nossas convicções morais, religiosas ou cívicas, do nosso “Eu” essencial e da nossa história de vida. Implica, sim, um esforço de construção – uma preocupação pelo processo –, pela forma como, na comunidade, encontrámos os equilíbrios necessários para que possamos viver em paz e liberdade, procurando equilíbrios frágeis entre aquilo que, por vezes, parece ser irreconciliável e conflituante. Uma cultura de pluralismo e de liberdade não é compatível com tudo o que seja irrefutável e translúcido. Desconfiemos de quem, em nome do liberalismo e negando o pluralismo que é a sua marca essencial, apresenta nas suas cartilhas a prescrição de paliativos para todos os problemas sociais, em conflito com o que é razoável e equilibrado.