Andei a resistir uns tempos a falar do vírus. Isto porque cedo se percebeu o conflito que se formaria entre a visão “física” da questão, em que os modelos matemáticos nos diriam que o melhor era “deixar arder”(deixar o vírus propagar-se naturalmente); e a visão da “engenharia”, que nos diz que se deixarmos arder, tal não resolveria a questão dos afetados, com a gravidade de ocuparem uma cama de cuidados intensivos durante 3 semanas. Isto num país onde nos últimos 3 anos foram retirados quase todos os recursos ao sistema de saúde para responder a este, ou a qualquer outro agente patológico.
Foi este conflito entre as duas visões que gerou boa parte do problema italiano e espanhol. Quer uma, quer outra, eram defendidas por pessoas de grande prestígio e anos de experiência a lidar com casos semelhantes e a mensagem passada à população era ambígua. Sim, deveriam ter muito cuidado, mas uma manifestação ou jogo de futebol não haveria de fazer mal. Mesmo no caso português, havia opiniões contra e a favor da solução de deixar arder. Se a isto juntarmos o estado em que o sistema de saúde se encontra com esta coexistência de opiniões nos profissionais, se tivéssemos sido os primeiros a levar com o vírus o cenário seria dantesco.
O facto é que, com a sorte de termos sido os últimos, ou sem ela, a opção do governo português foi a de retirar as pessoas da frente do vírus e, com isso, atrasar a propagação. Com a informação que tenho, esta opção tem funcionado naquilo que era o seu objetivo primordial que era, repita-se, atrasar a propagação. No entanto, nada tirou a razão àqueles que tinham a visão “física”, já que se sabia, desde o início, que nada disto é solução de facto, porque não podemos ter as pessoas em casa eternamente sem causar mais vítimas do que aquelas que o vírus causa. A verdade é que se no instante em que registámos o primeiro infetado tínhamos 10 499 999 potenciais infetados, ao dia em que escrevo passámos a ter 10 483 415. Ou seja, mais de um mês depois de termos fechado as universidades (a minha data de referência), temos por resolver 99.84% do problema inicial, acrescido de todos os problemas que o confinamento nos trouxe e que não tínhamos antes. Por outras palavras, a solução do governo português funcionou, pena é que não seja a solução para o problema que tínhamos. Ou, em rigor, é só uma parte da solução.
E tudo isto no país que serve de desculpa ao estado russo cada vez que estes implementam um sistema que retira informação pessoal dos cidadãos. Quando o governo português optou por fechar “toda a gente” em casa, estamos a falar num dos poucos países do mundo que recolhe e centraliza a informação pessoal de todos os seus cidadãos desde que estes têm 20 dias de idade. O que têm na conta do banco ao detalhe; onde vivem com uma resolução superior à do GPS do telemóvel; com quem vivem; o que consomem e, principalmente, o que consomem na farmácia ao ponto de se saber quantos comprimidos foram receitados pelo médico e para quê. Isto sem falar naquelas coisas que até o estado chinês deve ter, como a idade, a profissão, onde trabalham, quantas pessoas trabalham no mesmo sítio, etc.
Estou a referir isto porque, de facto, o mesmo estado que limitou a mobilidade das pessoas recorrendo a um estado de exceção, é exatamente o mesmo estado que recolhe toda a informação necessária para estabelecer um ranking de risco de contaminação do covid-19 e, provavelmente, o único do mundo que o faz. E estou a incluir neste mundo a China, a Coreia do Norte, e outras “democracias populares” do mesmo jaez. O mesmo mecanismo que serve para apontar pessoas para ver se estão a pagar os impostos todos, pode ser usado para classificar essas pessoas por risco de morte pelo covid-19. E isto sem precisar de parar a economia inteira.
Claro que tudo isto é fácil de dizer agora. Quando a emergência surgiu, não me parece que isto fosse hipótese. Mas passado mais de um mês, aposto que nada foi feito e o motivo da minha aposta reside naquilo que foi apresentado como solução para o sistema educativo.
Pensando no meu caso, quando a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa começou a limitar as visitas ao estrangeiro no início da pandemia em Portugal, eu comecei a preparar os meus alunos para a eventualidade de não poder dar aulas presencialmente (porque a minha profissão exige que me desloque). Uma semana depois dessa limitação, o reitor ordena a interrupção das aulas presenciais à meia-noite de uma segunda-feira, sendo que na quarta-feira, 38 horas depois, já eu me encontrava a dar aulas online. Até à segunda-feira seguinte, a esmagadora maioria dos meus colegas estava a dar aulas, depois de um trabalho intensivo dos profissionais da Faculdade para dar meios a todos, alunos e professores.
O Ministério da Educação, após um mês — sublinho, um mês –, de “trabalho remoto”, vem apresentar uma solução onde vai começar a gravar uns vídeos para a telescola. Há, naturalmente, razões para questionar o que andou a ser feito em mais de 30 dias, quando muitos arranjaram soluções em 30 horas. Até porque nada disto é gratuito do lado dos intervenientes, porque todos precisam de se adaptar às circunstâncias e, por experiência própria, requer tempo.
Com base na amostra, que concordo ser pequena, mas não irrelevante, devemos deduzir que nada foi feito relativamente ao problema concreto que consiste em ter uma solução para a epidemia de covid-19. Reforço a ideia de que ter poucos infetados e poucos internados não é a solução. É só um penso rápido enquanto se procura uma solução. E aquilo que foi apresentado como “solução” para a educação é, para ser muito simpático, surpreendente, atendendo que terá sido resultado de mais de um mês de trabalho.
Posso até estar a ser injusto, mas aquilo que parece óbvio nesta fase é que não vamos ter só a sorte de termos sido os últimos a levar com o vírus, vamos ter o azar de sermos os últimos a resolver a questão.
Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador