A decisão da Assembleia da República celebrar, presencialmente e num espaço fechado, o 25 de Abril, quando ainda estamos em estado de emergência, não é um erro são três. É uma despudorada afronta aos portugueses, é uma cisão num consenso prudente que tem vigorado na sociedade portuguesa e é uma traição aos valores de Abril. Já a soberba com que o seu presidente (a letra minúscula não foi um lapso) a defendeu garantir-lhe-á o lugar na história que merece: o Sr. Ferro vai conseguir figurar numa nota de rodapé, como aquele que querendo celebrar 1974 acabou celebrando 404 a.C.

É uma despudorada afronta aos portugueses porque estes, por razões que compreenderam e respeitaram, se têm visto privados de liberdades essenciais, como a de circulação e a de reunião, para assistirem agora, em nome do institucionalismo e da liberdade (pasme-se!), os seus representantes e mais uns senadores da República fazerem exactamente o contrário do que há mais de um mês têm proibido aos seus representados.

Não vou discutir a relevância do 25 de Abril, esgrimindo argumentos em favor da importância da Páscoa para os Cristãos e para os Judeus. Mas quero assinalar o que não pode deixar de ser assinalado. O quê? O que já referi, porque não se pode esquecer. Que os portugueses têm estado privados de liberdades essenciais há mais de um mês. Privados de estar com quem querem e quando querem. Privados de celebrar o aniversário da avó ou despedir-se condignamente do tio nas suas exéquias. Privados de trabalhar para ganhar o seu sustento e o da sua família. Privados de uma normalidade educativa na construção do futuro dos seus filhos; a réstia de esperança que ainda têm num elevador social avariado. Privados disto tudo por iniciativa presidencial, aprovação parlamentar e anuência governativa. Para agora assistirem, com a participação de todos estes cavalheiros e senhoras, não a trabalhos parlamentares essenciais à vida democrática, mas a celebrações. A uma festa; uma festa a que chamam da democracia. Num tipo de ajuntamento que proibiram ao povo, em condições que proibiram ao povo.

E é por isto que este acto é uma cisão num certo consenso até agora existente na sociedade portuguesa. Um consenso elogiado e que tem permitido achatar a curva pandémica, no que foi entendido por quase todos como um desígnio da Nação. Um consenso conseguido à custa de sacrifícios e privações de tantos, mas ainda assim um consenso. E o que é que faz o poder político num dos momentos mais críticos da sua história recente, com medidas tão excepcionais como as que foram impostas? Coloca-se acima do povo, fazendo lembrar aquela velha piada: sempre, sempre ao lado do povo; o povo de um lado e nós do outro.

E finalmente o paradoxo – ou a exibição indisfarçável de hipocrisia – que é a traição aos valores de Abril. Porque o 25 de Abril, segundo a litania oficial que todos os anos se repete há mais de 40 anos, veio pôr termo à opressão, ao esmagamento das liberdades, à limitação dos direitos fundamentais, à marginalização do povo da vida política. Pondo termo também ao elitismo, a direitos reservados para uns poucos e condicionado para a grande maioria da população e à subordinação dos interesses do País e do povo aos interesses de uma minoria. [a itálico excerto de resolução do Comité Central do Partido Comunista Português] Tudo isto suspenso, tudo isto obliterado, por uma elite cheia de si e com as prioridades trocadas.

A 25 de Abril de 404 a.C. a democrática e popular Atenas sucumbiu à autocrática e elitista Esparta no termo da Guerra do Peloponeso. Em 2020 o Sr. Ferro celebrou este acontecimento, enfiando os valores de Abril na gaveta.

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