A desinformação esconde do povo russo o horror e a injustiça da invasão da Ucrânia. No Ocidente, identificamos facilmente o bom e o mau da fita, mas seria ingénuo descartar o vilão. As guerras resultam da interação, moralmente neutra, de múltiplos agentes económicos que dançam conforme a música do dinheiro. O mesmo acontece com a desinformação. O verdadeiro vilão na longa-metragem do desenvolvimento humano é a desconfiança, surgindo agravada pelo desempenho amoral do dinheiro.
O principal sistema de incentivos da humanidade funciona indiscriminadamente, com mísseis, pães e medicamentos contribuindo indistintamente para o pecúlio das nações. Quando importa disfarçar as consequências desse despudor, logo surge a desinformação. É sabido que a centralização da informação propicia o abuso de poder e a fraude noticiosa. Na Rússia, se não fosse a informação descentralizada, veiculada na Internet, nem os jovens estariam informados para denunciar aos pais a propaganda do regime.
Também no mundo livre, os tempos não inspiram confiança. Por exemplo, as notícias falsas estão cada vez mais sofisticadas. Com os chamados vídeos deepfake, nem sequer podemos acreditar nos nossos próprios olhos. Simulando a realidade na perfeição, eles mostram qualquer pessoa a fazer ou afirmar tudo o que se pretende encenar. Veja-se o argumento das autoridades russas perante a alegada chacina de civis na cidade ucraniana de Bucha (entre outras): segundo o Ministério da Defesa russo, há “sinais de adulteração de vídeo” e “falsificações”, tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros anunciado que “são campanhas de desinformação do Ocidente”.
Por enquanto, a intriga não é suficiente para nos impedir de concluir que o massacre de inocentes na Ucrânia é, infelizmente, bem real. Todavia, a partir do momento em que deixa de ser possível ver para crer, a desinformação ameaça também o mundo livre. Sem confiança não há democracia, e temos de nos escudar contra a desinformação.
Não é por acaso que se desenham escudos nas notas e moedas dos países; há séculos que tais brasões carimbam as principais unidades da confiança humana. No entanto, uma extraordinária inovação tecnológica veio alterar a natureza do dinheiro. Novos protocolos informáticos permitem criar moedas digitais programáveis que não representam apenas capital financeiro. Elas podem ter diversas utilidades e desempenhar funções específicas. Por outras palavras, as novas moedas digitais também realizam trabalho. Ora, a integração deste segundo fator de produção no capital de confiança adstrito ao próprio dinheiro não é algo de somenos importância.
Quando o dinheiro passa a ser programado com certas e determinadas funcionalidades, é óbvio que a respetiva centralização ameaça a democracia. É verdade que o dinheiro tradicional não distingue o bem do mal nem ajuda à paz, mas, com o eventual monopólio de moedas digitais centralizadas, será pior a emenda que o soneto.
A centralização do dinheiro digital está já em curso até nos países democráticos. Este facto é muito preocupante, pois, com as moedas digitais dos bancos centrais (CBDC), o poder instituído será tentado a utilizar a tecnologia blockchain e a inteligência artificial para centralizar dados pessoais e condicionar diretamente o comportamento dos consumidores. É isso que vai acontecendo na China, onde o dinheiro digital do regime torna cada vez mais medonho um sistema de créditos sociais que discrimina e oprime os cidadãos.
Caso as CBDC venham a monopolizar os meios de pagamento, isso deve significar o fim da privacidade e da liberdade. Podemos pensar que, em democracia, os cidadãos não irão pactuar com tamanha restrição da sua autonomia, mas estaremos a subestimar o poder da desinformação. Bem vistas as coisas, se é possível justificar a invasão de um estado soberano e o massacre de inocentes, também será exequível processar a desinformação necessária para diabolizar o Bitcoin e outras criptomoedas descentralizadas.
Para escudar as pessoas contra um dinheiro ditatorial e combater a desinformação, as moedas digitais e as notícias têm de ser validadas de forma independente. Ora, sem redes digitais públicas descentralizadas, não existirá forma de evitar a insidiosa centralização do dinheiro e da informação. Por isso, o rumo dos acontecimentos é bastante preocupante.
Tudo começou na sequência da crise financeira de 2007-2008, ao ser tornado público (open source) um protocolo informático que distribui a confiança monetária através da Internet e permite efetuar transações sem intermediários. Esta nova tecnologia criptográfica designa-se blockchain e veio habilitar a transferência de dados originais diretamente entre as pessoas, incluindo moedas digitais e outras informações valiosas, por exemplo NFTs.
Como reza o ditado, para grandes males grandes remédios e a primeira tecnologia descentralizadora da história não poderia ser mais oportuna. Vivemos numa época em que o progresso tecnológico e a centralização do poder formam combinações explosivas (literalmente), pelo que, a perspetiva de um futuro promissor passa a depender da descentralização digital. Complicando ainda mais as coisas, também é um tempo em que a desinformação pode fazer desperdiçar uma oportunidade inigualável de usar a tecnologia para melhorar o mundo.
Os interesses do costume procuram convencer-nos de que as questões de segurança justificam a centralização de dados e transações, preparando-se, porventura, para proibir as criptomoedas e a partilha autónoma de informações na sociedade civil. Claro que jovens esclarecidos tentam informar as gerações mais velhas de que isso não é bem assim, explicando os contornos das moedas digitais e as graves consequências da centralização de dados pessoais em termos de privacidade e liberdade. Todavia, tal como acontece na Rússia a propósito da invasão da Ucrânia, a desinformação dificulta o esclarecimento das pessoas, desta feita sobre a importância da descentralização digital.
É imprescindível para cada cidadão garantir a propriedade exclusiva dos seus dados pessoais. A sociedade está a ser organizada em redes digitais e a centralização de dados concentra demasiado o poder. Na verdade, nesta era digital, centralizar o dinheiro e a informação é condição suficiente para boicotar a própria democracia.
Os dados extraídos das redes sociais e das carteiras digitais têm significado. Com base nessa informação, conteúdos e moedas digitais programáveis podem ser “pintados” a condizer com a conduta social e a cor política dos cidadãos. Por isso, assegurar a isenção dos programas informáticos através da descentralização digital é indispensável para manter a privacidade e a liberdade.
Proibir as criptomoedas é impedir as pessoas de utilizar chaves criptográficas privadas, castrando a autonomia individual no acesso a redes digitais públicas e transparentes onde o dinheiro e a informação podem circular em segurança sem a ingerência de terceiros. Da mesma forma que os proprietários de criptomoedas fazem prova da respetiva posse utilizando chaves criptográficas, também jornalistas e autores podem, com elas, assinar e autenticar notícias e conteúdos digitais. Por outras palavras, a defesa da iniciativa privada, a proteção da propriedade e o combate à desinformação muito dependem da descentralização digital.
Os contratos autoexecutáveis (smart contracts) codificam a lógica dos negócios realizados em redes blockchain e podem incluir permissões de edição e distribuição de textos, imagens e vídeos, de acordo com as cláusulas contratadas pelos detentores das respetivas chaves criptográficas privadas. Assim, qualquer indivíduo poderá estipular a confidencialidade pretendida para os seus dados pessoais, bem como provar a autenticidade dos conteúdos digitais por si produzidos e a respetiva integridade perante terceiros, não importando quantas vezes tais conteúdos são copiados ou de que forma eles são manuseados. É graças a este novo tipo de confiança que os NFTs valem quantias astronómicas e as criptomoedas dispensam os próprios bancos.
Se esta tecnologia é novidade para o leitor, talvez seja porque a desinformação e o vazio noticioso existem até em democracia. Mesmo que o novo paradigma de confiança e a alteração da natureza do dinheiro possam não vir a resolver todos os males do mundo, é confrangedor o alheamento da classe dirigente face às profundas implicações políticas de uma tecnologia tão estruturante. Para o bem ou para o mal, as tecnologias deste calibre alteram sempre o rumo da história e a mudança que se avizinha será muito significativa.
A descentralização digital permitirá proteger a democracia e a liberdade, ou mesmo prevenir a autodestruição da humanidade. No entanto, caso prevaleça a desinformação, a centralização das redes blockchain servirá para concentrar irremediavelmente a riqueza e o poder. Posto isto, creio existirem boas razões para termos esperança no futuro apesar dos tempos difíceis que atravessamos, até porque a necessidade aguça o engenho. Tendo em conta que esta nova tecnologia da confiança viabiliza a liberalização do dinheiro e a auto-organização comunitária, talvez ajude a mitigar as consequências do aumento da inflação e possa constituir a pedra de toque para uma nova etapa do desenvolvimento humano. Assim haja liberdade para tal!