Houve tempo em que o município de Lisboa serviu de antecâmara e de rampa de lançamento para voos políticos mais ambiciosos, como ser Presidente da República ou primeiro ministro, o que aconteceu com Jorge Sampaio e António Costa. As coisas correram depois mal a Fernando Medina, que perdeu as eleições e a liderança da Câmara, e não foi além de uma passagem fugaz pelo Ministério das Finanças.
Hoje, são as televisões que promovem comentadores políticos a candidatos a Belém, como será muito provavelmente o caso de Luís Marques Mendes — conforme admitiu na Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide —, ou a eurodeputados, uma aposta ganha por Sebastião Bugalho, sob o pálio e os bons ofícios de Luís Montenegro.
À luz destes exemplos, compreende-se melhor a urgência de ex-governantes socialistas, que se sentem ungidos para pastorearem os seus antigos “súbditos” — embora de “pastores” tenham pouco —, em conseguir assento nos estúdios das televisões.
Marques Mendes goza de um estatuto “sui generis”, por ter sido “herdeiro” do formato e do dia e horário em que Marcelo Rebelo de Sousa se “libertava” das formalidades de académico e de jurisconsulto, para envergar o fato descontraído de comentador político, com o “savoir faire” e algum maquiavelismo que o tornaram popular.
Eleito e reeleito sem grande esforço para Belém, beneficiário da popularidade acumulada nas suas charlas, Marcelo depressa percebeu que podia ser “comentador” quase diário, apesar da roupagem presidencial, assediado pelos media aonde quer que vá. E não se faz rogado.
Pode imaginar-se como este mediatismo fascina e amedronta qualquer candidato, sobretudo se se dedicar, também, ao ofício de comentador. Claro que Marques Mendes, ao declarar com intuitos óbvios, que estava ainda a reflectir , mas muito próximo da decisão, quis “marcar terreno”, depois de Montenegro ter revelado a preferência por alguém da casa, e de o líder parlamentar do partido se ter “descaído” a indicar Leonor Beleza como “uma excelente candidata”, embora a própria tenha negado esse “impulso”, e que não pondera “nem ponderarei tal candidatura”. Pelo menos Marques Mendes terá respirado de alívio.
Num fim de semana fértil em palavras cruzadas e recados políticos, o país despertou da letargia estival, e ficou, assim, confrontado com outra originalidade: a quase dois anos de distância das eleições presidenciais — e ainda com autárquicas pelo meio — assiste-se já ao alinhamento na “grelha de partida” dos putativos candidatos, à esquerda e à direita, empenhados em renderem Marcelo em Belém. É divertido.
Este folclore político tem a vantagem de distrair os portugueses de várias “pequenas coisas” que teimam em não funcionar e em não sair de cena, desde as urgências hospitalares do SNS — fechadas ou abertas e entupidas —, até aos milhares de alunos sem professores em algumas disciplinas na escola pública; ou à Justiça — lenta, burocrática e com greves continuadas —, que deixa prescrever processos, até os mais mediáticos.
No meio de tanta azáfama política, e do habitual “baile de máscaras”, é natural que Marques Mendes se ache à altura de suceder a Marcelo, como lhe sucedeu no comentário político.
Na área socialista, Mário Centeno — o “rosto das cativações”, que arruinaram o investimento e os serviços públicos — estará convencido de que o Banco de Portugal lhe servirá de óptimo biombo, com resguardo e garantia de visibilidade.
Ainda no PS, Augusto Santos Silva, embora em queda livre depois de ter perdido o parlamento, como presidente e deputado, não “atirou a toalha ao chão”. E lá compareceu no Fórum do Bloco de Esquerda com o encargo de “malhar na direita”. Triste sina para um homem que já foi quase tudo.
Depois, há ainda as incógnitas de António Guterres, à esquerda, e de Pedro Passos Coelho, à direita.
Em resumo: se o debate parlamentar se “transferiu” para as televisões as presidenciais vão pelo mesmo caminho…
Menos televisiva, mas nem por isso menos falada, Maria Luís Albuquerque viu passar uma década desde que o seu nome foi mencionado, e esteve na calha, para ocupar em Bruxelas um lugar de comissária europeia.
Se não fosse a derrocada do BES e ocupar nessa altura a pasta das Finanças do governo de Pedro Passos Coelho — e este ter achado que precisava dela por perto —, Maria Luís já incluiria no currículo a experiência de comissária europeia.
Diz o ditado popular que “mais vale tarde do que nunca”. E Maria Luís soube esperar, sem precisar de exibir-se nos ecrãs a provar que existe.
Estava “escrito nos astros” que, mais cedo ou mais tarde, o seu mérito e competências seriam reconhecidos, até por socialistas não-alinhados, como António Vitorino, ex-comissário europeu, que elogiou a escolha sem o menor rebuço.
De qualquer modo, e ao contrário do que aconteceu com António Costa, levado em andor pelas esquerdas para presidir ao Conselho Europeu — e apoiado, também, por Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Montenegro, em nome do invocado interesse nacional —, a maioria dos media empenhou-se em destratar Maria Luís, apodando-a de “ministra da austeridade”, entre outros mimos, com o claro objectivo de desvalorizar a opção.
Sem pudor, ouviram-se alguns responsáveis socialistas, entre os quais, a nova eurodeputada Marta Temido — que deixou o SNS no estado que se sabe — a protestarem contra a escolha de Maria Luís.
Incapaz de assumir que a vinda da troika e os cofres do Estado vazios exibiram o “selo” de governos socialistas, Marta Temido teve o topete de declarar que “é evidente que o nome da dra. Maria Luís Albuquerque recorda a todos os portugueses políticas de austeridade que são para todos de má memória”. Uma lástima.
E nem mesmo Marcelo Rebelo de Sousa, lesto a qualificar, em Agosto de 2019, a socialista Elisa Ferreira como “um nome muito bom“ para Portugal na Comissão Europeia , foi capaz de ir além de uma pudica evasiva sobre Maria Luís, referindo de passagem que “há quem concorde e há quem discorde . O Presidente República não tem de pronunciar-se”. Afinal, em que ficamos?
Entendamo-nos. Será razoável que o Presidente use dois pesos e duas medidas? Elogioso, sem reservas, com Elisa Ferreira, e a “chutar para canto” com Maria Luís? Não foi bonito.
Moral da história: enquanto à direita, a candidatura de António Costa ao Conselho Europeu foi acompanhada por um benevolente esquecimento dos muitos erros cometidos enquanto governante, já à esquerda não faltaram os “notáveis” do PS a “desancar” em Maria Luís, repetindo a narrativa do costume, como se o partido fosse alheio à austeridade imposta, a seguir à bancarrota com Sócrates. Uma amnésia reincidente.
As esquerdas assustam-se e perdem a compostura de cada vez que há algo na paisagem política que lhes “cheire” a Pedro Passo Coelho. É bizarro, mas nunca falha. E Maria Luís não se esqueceu nem se furtou a recordar em Castelo de Vide que “o País reconheceu Pedro Passos Coelho: ganhámos as eleições em 2015.” E com razão. Ficou-lhe bem.
É um facto que as esquerdas teimam em ignorar o desfecho dessas eleições como se nunca tivessem existido.
Maria Luís precisou de coragem e de frieza para enfrentar a crise das finanças públicas, recebida dos socialistas, e ainda teve de aturar, sem retribuir, as deselegâncias de deputados fiéis a Sócrates. Foram anos críticos.
Queira-se ou não a televisão tornou-se obrigatória para todos os que queiram protagonismo. Que o diga Pedro Costa, o filho de António Costa, que renunciou em finais de abril a presidente da Junta de freguesia de Campo de Ourique, alegando ter chegado ao seu “limite”, para se mudar, com trouxa feita, para o estúdio da CNN Portugal, embora já “disponível”, volvidos escassos meses, para voltar à política autárquica “para ser candidato a vereador em Lisboa”. A coerência “às malvas”. Mas, enfim, “filho de peixe…”
Por estas e outras, não é de estranhar que a ERC acompanhe com especial desvelo o que passa nas televisões. Entretanto, “politizou-se”, distanciando-se do equilibro e da equidistância que devem caracterizar um regulador. E perdeu a razão. Nada que seja inédito. Mas repetiu-se.
Muito já se escreveu sobre a queixa chegada à ERC por causa de uma entrevista a Marta Temido, então cabeça de lista do PS e candidata a eurodeputada, efectuada por José Rodrigues dos Santos, no telejornal da RTP.
Impreparada, Marta Temido não esperava que o jornalista a confrontasse com os seus próprios erros e muito menos que insistisse em perguntas às quais a candidata não queria obviamente responder, com a insegurança à flor da pele.
Ao reprovar o trabalho de Rodrigues dos Santos – que recusa, e bem, o “frete amável “ – a ERC deu um passo em falso e demonstrou, que na sua recomposição, sofreu uma acentuada esquerdização, com vantagem clara para o PS.
A deliberação publicada sobre a entrevista de Rodrigues dos Santos à ex-ministra Marta Temido, provou isso mesmo.
A natureza das observações feitas ao trabalho do jornalista recorda os piores tempos da ERC, quando o regulador era presidido por José Azeredo Lopes (mais tarde um infeliz ministro da Defesa, hoje com estatuto de comentador-residente na televisão), secundado por Estrela Serrano, ambos devotos de José Sócrates. Nessa altura, não pouparam o Jornal Nacional da TVI e menos ainda a jornalista Manuela Moura Guedes, que muito padeceu…
Foi a época em que a vogal do regulador, a socialista Estrela Serrano, chegou a considerar que a “investigação da ERC” demonstrara uma grave “instrumentalização do Jornal de Sexta por parte de fontes ligadas ao processo Freeport, que lhe faziam chegar elementos em segredo de justiça, visando incriminar o primeiro-ministro”.
Como tudo isto soa mal e pior à distância, sabendo-se o que se sabe sobre Sócrates, que está há uma década para ser julgado.
Desta vez, com Rodrigues dos Santos, o regulador, achou por bem concluir que a entrevista, “pela forma como foi conduzida, afastou-se do registo de factualidade e das regras de condução da entrevista jornalística”. Nem mais.
Uma conclusão que é um passo em falso, e ”um aviso à navegação” para quem queira pensar pela sua cabeça, e não abdique de ”incomodar” os entrevistados. (Melhor sorte teve Vítor Gonçalves, também jornalista da RTP, que entrevistou André Ventura, e que foi ilibado noutra deliberação da ERC, perante uma queixa semelhante…).
O “pecado” de Rodrigues do Santos, foi ter embaraçado Marta Temido, talvez carente de entrevistas “amáveis” nas quais o jornalista se limita ao favor e “esquece” o contraditório.
Mesmo revisto o trabalho, só poderá concluir-se que o jornalista desempenhou o seu papel com independência profissional, sem deixar passar em claro as evasivas ou as “respostas ao lado” de Marta Temido. Não serviu de “pé de microfone”. Ponto.
A deliberação da ERC — com a presidente do regulador ausente —, seria aprovada pelo vice-presidente em exercício e por dois vogais. Por curiosidade, dois dos signatários de mais esta “proeza” da ERC foram indicados pelo PSD…
Mais tarde, perante as incongruências da deliberação, desmontadas num texto de opinião de Rodrigues dos Santos, publicado neste jornal, a ERC procedeu à rectificação do alegado “lapso de transcrição” sem, contudo, “emendar a mão” e pedir desculpa ao visado, como se impunha e lembrava, oportunamente, João Miguel Tavares, no Público.
Veremos que outras surpresas nos reserva o regulador e se tenciona arvorar-se em juiz das condutas jornalísticas em entrevistas ou noutras modalidades.
O ministro Pedro Duarte diria na Universidade de Verão do PSD, a propósito da polémica, que prefere “uma ERC mais macroprudencial do que uma entidade reguladora que ande a ingerir em questões de detalhe “. O problema da ERC, que não é de hoje, é precisamente esse: está nos detalhes…