Na próxima segunda-feira celebra-se o 40º aniversário da Constituição Apostólica Ut sit, de 28-11-1982, pela qual São João Paulo II erigiu em prelatura pessoal o Opus Dei, que desde então se passou a denominar Prelatura da Santa Cruz e Opus Dei. Esta instituição eclesial viu agora alterado o seu estatuto canónico, pelo Motu próprio Ad charisma tuendum, de 14-7-2022, do Papa Francisco. A 19-3-2022, pela Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, sobre a cúria romana, o Santo Padre já tinha transferido, do Dicastério dos Bispos para o do Clero, a única prelatura pessoal da Igreja católica.

Causou surpresa esta inesperada e súbita alteração de uma solução jurídica prevista pela Concílio Vaticano II, preconizada pelo fundador, que foi estudada durante anos a fio e que, desde há quarenta anos, tem funcionado perfeitamente, quer no que respeita à dependência da prelatura à Santa Sé, quer no âmbito das suas relações com as dioceses e demais realidades eclesiais.

Em decisões administrativas, os Papas não gozam de infalibilidade e têm total liberdade para manter, ou alterar, as decisões dos seus antecessores. Prova disso é que um Papa aprovou a Companhia de Jesus, outro a extinguiu e outro ainda a restaurou. Nestas matérias, o Romano Pontífice goza de um poder absoluto, que exerce sobretudo através de decretos papais, ou Motu próprios, a que Francisco tem recorrido frequentemente: no actual pontificado já foram publicados mais Motu próprios do que nos dois anteriores!

O carisma do Opus Dei é o que, por inspiração divina – como se diz na Constituição Apostólica Ut sit – foi concedido a São Josemaria Escrivá de Balaguer, que a Santa Sé canonizou em 2002. A vivência deste carisma eclesial compete aos seus sucessores à frente da instituição por ele fundada há quase um século, a 2 de Outubro de 1928, bem como aos que receberam a graça de dar vida e continuidade a esse espírito de santificação do trabalho profissional e dos deveres quotidianos do cristão. A confirmação do carácter sobrenatural dos carismas eclesiais compete, no respeito pela sua especificidade, à máxima autoridade da Igreja.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Pode parecer irrelevante que a prelatura pessoal do Opus Dei tenha deixado de depender, como determinava a Constituição Apostólica Ut sit, do Dicastério dos Bispos, para passar a estar integrada no Dicastério do Clero. Disse-se que, por este motivo, a prelatura perdia poder e independência, mas são dois predicados que nunca teve, nem desejou, porque a sua existência, como a de qualquer entidade eclesial, só faz sentido na Igreja. É também por esta razão que, filialmente, acatou esta decisão do Papa.

A razão pela qual a prelatura do Opus Dei dependia da então chamada Congregação para os Bispos decorria da sua analogia com as dioceses. Quando surgiram, no âmbito académico, algumas dúvidas sobre a natureza das prelaturas pessoais, São João Paulo II esclareceu que, no caso do Opus Dei, os leigos não são meros cooperantes externos, porque fazem parte da prelatura, em que ocupam a maioria dos cargos de governo. Afirmou também, expressa e formalmente, a natureza hierárquica da prelatura, nomeadamente ordenando bispos, sucessivamente, os dois anteriores prelados do Opus Dei, como consequência natural da sua condição de prelados e expressão inequívoca da sua integração na estrutura hierárquica da Igreja, que distingue a prelatura das associações de fiéis e dos institutos religiosos.

As prelaturas pessoais são, como o seu próprio nome indica, uma espécie do género ‘prelatura’, de que a outra modalidade são as prelaturas territoriais. Estas, segundo o Código de Direito Canónico, estão juridicamente equiparadas às dioceses (cân. 370) e, por isso, os seus prelados são, em regra, bispos. Portanto, que os dois primeiros prelados do Opus Dei fossem ordenados bispos, depois de terem sido nomeados prelados, não releva nenhum privilégio, nem favoritismo. Desfavor é, pelo contrário, que o actual prelado, já nomeado pelo Papa Francisco, não seja bispo, ao invés dos anteriores prelados.

Com efeito, o termo prelado é sinónimo de bispo e, até, de bispo diocesano, pelo que a existência de prelados não bispos se afigura anómala, razão que explica a nomeação episcopal dos dois primeiros prelados do Opus Dei. Se é, portanto, muito congruente que os prelados pessoais, como os territoriais, sejam bispos, é juridicamente inconsistente que o não possam ser, como agora se determina pelo Motu próprio Ad charisma tuendum.

A inserção dos leigos na Igreja universal faz-se, em geral, pela sua pertença a uma Igreja particular, presidida por um Bispo, que depende do correspondente Dicastério. Portanto, à imagem e semelhança das dioceses e demais Igrejas particulares, a integração da prelatura do Opus Dei no Dicastério dos Bispos era também expressão da sua natureza eminentemente secular, pois 98% dos fiéis da prelatura são leigos.

A transferência do Opus Dei para o Dicastério do Clero significa, portanto, que, para a Santa Sé, são mais relevantes os 2% de clérigos da prelatura, do que os 98% de fiéis que o não são. Talvez não seja clericalismo, mas lá que parece, parece …

Enquanto dependentes do Dicastério dos Bispos, os leigos do Opus Dei estavam na mesma condição que os demais fiéis comuns e normais, que é o que, de facto e canonicamente, são, porque a sua incorporação na prelatura não só não altera o seu estado laical, como ainda reforça mais o seu estatuto de fiéis diocesanos. Mas agora, integrados no Dicastério do Clero, estão inseridos numa estrutura que, a bem dizer, nada tem a ver com a sua condição secular e laical.

Não deixa de ser paradoxal que esta decisão papal tenha sido publicada enquanto a Igreja universal discute a sinodalidade. Embora as prelaturas pessoais já tivessem sido previstas pelo Concílio Vaticano II e sistematizadas no Código de Direito Canónico, São João Paulo II, antes de criar a primeira e única prelatura pessoal, consultou todos os bispos de todos os países onde o Opus Dei, com a devida vénia do Ordinário do lugar, realizava o seu apostolado. Foram milhares de bispos que intervieram e, só depois de verificada a sua maioritária concordância, São João Paulo II erigiu, faz agora quarenta anos, a prelatura pessoal do Opus Dei. Caso para dizer que, isto sim, é sinodalidade!

Não sendo o Papa Francisco teólogo, nem canonista, é provável que estas alterações tenham sido sugeridas pelos seus colaboradores. É natural que o Papa jesuíta tenha, na Companhia de Jesus, os seus principais amigos e conselheiros: são, sem dúvida, personalidades de reconhecido mérito, mas seria desejável que a Santa Sé estivesse mais aberta à diversidade dos carismas eclesiais, até porque é razoável que alguns religiosos tenham dificuldade em compreender uma espiritualidade profundamente secular e laical, como é a da instituição fundada por São Josemaria Escrivá. Não obstante, Francisco estima o Opus Dei e os seus apostolados, e sabe que todos os fiéis da prelatura estão sinceramente unidos ao Papa. Como dizia S. Josemaria: todos com Pedro, a Jesus, por Maria!

No acidentado itinerário jurídico do Opus Dei, o fundador sofreu inúmeras contradições, como Francisco de Assis, Teresa de Ávila, Inácio de Loiola e outros pioneiros de novos caminhos de santidade cristã. Quando pediu, pela primeira vez, a aprovação pontifícia do Opus Dei, foi-lhe dito que esta instituição tinha chegado com um século de antecipação! Sendo um homem de Deus e da Igreja, sempre teve a certeza de que, um dia, o carisma sobrenatural de que se sabia portador, mas não autor – Opus Dei quer dizer, sem jactância, obra de Deus – seria reconhecido integralmente. Já o foi em parte, ao ser erigido em prelatura pessoal, mas ainda sofre, como o próprio Vaticano II, a incompreensão de alguns sectores mais conservadores e tradicionalistas da Igreja.

Apesar deste aparente retrocesso institucional, o Motu próprio Ad charisma tuendum confirma, na sua essência, a Constituição Apostólica Ut sit, pela qual São João Paulo II, aplicando o Concílio Vaticano II e o Código de Direito Canónico, criou, na estrutura hierárquica da Igreja universal, a Prelatura pessoal da Santa Cruz e Opus Dei, confirmando a sua natureza eclesial; a integração, na sua estrutura orgânica, de leigos e sacerdotes, sob a jurisdição do prelado; e a sua missão de serviço à Igreja e a todas as almas. Laus Deo!