Num dos últimos episódios de “Gente que não sabe estar”, um programa que nos aligeira a melancolia dominical, Ricardo Araújo Pereira socorreu-se da mão invisível, o famoso conceito introduzido pelo escocês Adam Smith, para fazer troça (de uma forma educada e elevada, como é seu hábito) do novo partido Iniciativa Liberal (IL).

Oscar Wilde, que é sempre um activo valioso quando estamos a precisar de uma frase certeira, dizia que a única coisa pior do que falarem mal de nós é não falarem de nós, pelo que, aparentemente, a IL não tem motivos para ficar chateada. O problema, neste caso, é outro: para brincar com a IL, Araújo Pereira recorreu à filosofia de um senhor que já não está cá para se justificar, e que, por isso, merecia boas cabeças que o defendessem. No entanto, como estas não se chegam à frente, atrevo-me a tomar eu as eventuais dores do defunto.

Adam Smith festejaria hoje, 5 de Junho, caso fosse imortal como as suas ideias, o seu 296º aniversário. É provável que a vida eterna o fizesse feliz mas, como não há bela sem senão, teria ouvido da boca de Ricardo Araújo Pereira a seguinte descrição do seu pensamento: “o Estado que se borrife nos de baixo e não proteja ninguém, pois há uma mão invisível que milagrosamente vai pôr tudo bem no fim”. E estou certo de que teria ficado magoado com a injustiça.

Autores com a grandeza deste escocês setecentista, justamente tratado como uma das maiores figuras do liberalismo, são recorrentemente mais citados do que lidos, o que origina distorções significativas provocadas quer pelos seus detractores quer pelos seus admiradores. No caso de Adam Smith, é comum ouvirmos que advogava a abolição do Estado, o individualismo radical movido à base de egoísmo e ganância, e as virtudes de um capitalismo selvagem do estilo “salve-se quem puder”. Mas a realidade é bem diferente, como não podia deixar de ser quando estamos a falar de um notável iluminista que olhava para a economia como um capítulo da Filosofia Moral e que dedicou a primeira metade da vida ao estudo e defesa da empatia, um sentimento que considerava essencial para o funcionamento harmonioso de uma sociedade.

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Não se pode (nem deve) negar a importância que Adam Smith atribui ao interesse próprio dos indivíduos no sucesso económico das nações, mas é falso que o seu pensamento estivesse com os “de cima” em prejuízo dos “de baixo”. Pelo contrário, toda a sua teoria em prol da cooperação voluntária entre os homens e da libertação da “sociedade comercial” do comando centralizado do Estado pretendia apenas facilitar o crescimento económico sustentado em benefício das classes médias e dos pobres. Benefício esse que seria também conquistado à custa dos privilégios dos aristocratas e dos monopolistas da época.

Sem qualquer intenção de exaustividade, salienta-se que o autor da Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e da Riqueza das Nações (1776) defendeu nos seus livros a intervenção do Estado em várias áreas (não só na defesa e na justiça, mas também, por exemplo, nas obras públicas e na instrução do povo), dedicou numerosos parágrafos à necessidade de melhorar as condições de vida dos grupos sociais mais frágeis, abordou explicitamente a importância de uma distribuição justa do rendimento, e chegou, inclusive, a mostrar simpatia pelos impostos progressivos, uma posição que, em pleno séc. XVIII, era interpretada como um “estou-me a borrifar nos de cima”. Além disso, utilizou, em todos os seus escritos, uma linguagem moderada, humana e carregada de empatia em relação aos menos afortunados.

Se eu tivesse uma mão invisível, não a da teoria económica de Adam Smith mas uma de carne e osso, tinha-me aproveitado dela para dar um calduço a Ricardo Araújo Pereira durante aquele episódio. Mas com pouca força, claro, uma vez que estava sob o efeito da melancolia dominical e não ia danificar um dos remédios que tenho à disposição.