Óscar Benavides reencarnou em António Costa. Não sei se estão a ver quem é: Benavides foi presidente do Peru em 1914-1915 e em 1933-1939. Não sendo conhecido pela sua generosidade a tratar os adversários, entrou na História (e nos livros de citações) com uma frase que era todo um programa político: “Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei”.

António Costa tem, como se sabe, muitos amigos e muito inimigos. Por isso, dá-lhe especial jeito que a frase passe da retórica para a acção. E, de facto, tem passado.

O ministro Adjunto Pedro Siza Vieira abriu uma empresa imobiliária um dia antes de ir para o Governo (o que é uma audácia), fez-se sócio-gerente (o que é uma cegueira), entrou em incompatibilidade (o que é uma imprudência), corrigiu a situação algum tempo depois (o que é um atraso), recusou dar explicações totais sobre o caso (o que é uma insensatez) — e, finalmente, foi resgatado pelo primeiro-ministro, que assegurou no parlamento que se tratou apenas de um lapso.

Pedro Siza Vieira foi “Professor Convidado da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e da Universidade Nova de Lisboa”, foi “formador em pós-graduações e cursos promovidos por diversas instituições”, foi sócio de duas grandes sociedades de advogados, “integrou as listas de árbitros” de inúmeros centros de arbitragem jurídica e “integrou vários grupos de trabalho responsáveis pela elaboração de anteprojetos legislativos”. Tudo isto é o seu currículo, mas nada disto é o currículo que conta. Há uns meses, Pedro Siza Vieira fez uma declaração ao Expresso sobre António Costa que é a chave da sua existência — e da sua sobrevivência — política: “Somos amigos. Dou-me bem com ele e gosto muito dele”.

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Percebe-se porque é que o primeiro-ministro acha o “lapso” de Pedro Siza Vieira normal. Afinal, também ele teve os seus. No parlamento, confessou: “Eu próprio, por exemplo, já cometi lapsos de atrasar declarações ao Tribunal Constitucional que não sabia que estava obrigado”. E a ministra Maria Manuel Leitão Marques revelou há dias que também ela, desgraçadamente, foi forçada a corrigir uma declaração que fizera ao Tribunal Constitucional.

É tudo tão comum, é tudo tão inocente, que os governantes já admitiram a sua absoluta incapacidade para cumprir as obrigações mais básicas de transparência. A partir de agora, vão ter uma check list para não se esquecerem de burocracias — seguir-se-á, imagina-se, uma check list para não se esquecerem de como se anda (primeiro um pé, depois o outro) ou de como se respira (primeiro inspira-se, depois expira-se).

Perante tudo isto, talvez seja útil regressar ao discurso de Pedro Nuno Santos (criador, inspirador e líder da nova corrente do PS, o pedronunismo) no Congresso do PS deste fim de semana: “Os partidos socialistas não foram criados para representar elites. Foram criados para representar a grande maioria do povo português. (…) São centenas de milhar, talvez milhões, de trabalhadores, que trabalham 40 ou mais horas por semana e ganham mal, ganham pouco”.

Os trabalhadores que “ganham mal, ganham pouco” não têm com a burocracia do Estado a mesma relação que António Costa ou Pedro Siza Vieira, membros encartados da “elite” que deixa Pedro Nuno Santos indiferente. E, não sendo inimigos do primeiro-ministro, também não são seus amigos. Quando têm a sorte de viver na capital — e não no interior, onde são ignorados, e esquecidos, e abandonados –, levantam-se às 5h da manhã para irem fazer fila para uma Loja do Cidadão; depois de tirarem a senha 126, ficam horas à espera — em pé, porque não há cadeiras suficientes; no final do dia, percebem que não vão ser atendidos, porque nunca chegou a sua vez (a hora de fecho deu-se na senha 97); e concluem que vão ter de perder outro dia de trabalho para tentarem resolver o seu problema.

Se, algures neste processo, os trabalhadores que “ganham mal, ganham pouco” cometerem algum “lapso”, sabem com o que não contam: não contam com a amizade de um primeiro-ministro magnânimo que lhes permitiria ter tudo. E sabem com o que contam: contam com a lei. É uma tristeza, mas é assim.