Há em Portugal uma categoria de pessoas de gozam de um estatuto muito especial: onde quer que vão são apresentados como senadores. Num país sem Senado, é bizarro. Num país de doutores e engenheiros, é superlativo. É até melhor do que ser o “senhor comendador” das aldeias de outrora. Dispenso-me, por pudor, de tentar elaborar uma lista, mas já não me dispenso de citar um caso paradigmático: Diogo Freitas do Amaral.
É certo que ele já foi quase tudo, mas no quase tudo foi sempre, sobretudo, apenas o quase. Liderou o CDS, mas todos sabiam que era Amaro de Costa a verdadeira alma do partido. Esteve com Sá Carneiro, mas num segundo plano. Na AD não descansou enquanto não a abandonou, com um pretexto fútil. Ia sendo eleito Presidente, mas o fenómeno da sua campanha, o motor do seu êxito, era uma estrela em ascensão, Cavaco Silva. Saiu do CDS e ao CDS regressou, para o logro da “equidistância” e a consagração do “partido do táxi”. Julgou que ia mandar nas Nações Unidas e viu-se no papel de mero mestre de cerimónias. Foi ministro de novo, mas como adereço de José Sócrates, condição que tardou a entender. E depois fez-se “senador”. Não se sabe bem como, mas sabe-se bem para quê: para engrossar o exército de carpideiras que desfila pelas televisões, falando pausadamente e mostrando, sempre, um ar grave, pesado, omnisciente.
Foi lá que esteve de novo esta quarta-feira. Como grande entrevistado da Grande Entrevista da televisão que pagamos com as nossas taxas. Teve uma prestação ao seu melhor nível – o que diz tudo.
Atentemos, primeiro, na pose. Foi, como sempre, pomposa, grave, majestática. Com um tom professoral, catedrático. Freitas do Amaral é daquelas pessoas que fez sempre questão de colocar todo o seu peso, toda a gravitas, em qualquer coisa que diga, mesmo quando está a dizer banalidades ou a falar do que não conhece. Ou seja, a dizer disparates. Como sucedeu nessa entrevista.
Freitas do Amaral está, ficámos a saber, muito preocupado com a situação na PT, que considera “muito grave para o nosso país”. Mas tem uma solução: como as acções da empresa estão “baratas”, o Estado só tem de adquirir 33,4% e assim passar a mandar em tudo. Com aquele ar de quem é um homem informado e, também, de uma enorme abertura, subscreve a posição do PCP e do Bloco, com o detalhe de só não pedir ao Estado que fique com 51% da PT. Um terço chega, sentencia.
Quando alguém fala com a certeza no falar de Freitas do Amaral, esse alguém coloca-se acima de qualquer interrupção, ainda menos de contestação – e por isso passa incólume numa entrevista como a da RTP mesmo quando está a propor o impossível. Na verdade, a empresa que está cotada em Bolsa e que o professor de Direito se propõe comprar é a PT SGPS cujos únicos activos são uma quota na Oi. A PT Portugal, a que nos interessa, é apenas uma subsidiária da operadora brasileira, não está na Bolsa. O que significa que, se o Governo seguisse a sugestão da emérita figura, acabaria sem umas centenas de milhões de euros e com uma participação muito minoritária na Oi que para nada lhe serviria, pois não lhe daria nenhuma capacidade de influir no destino da PT Portugal.
Mas o nosso senador não se ficou por aqui. Sentenciou também que a forma como o Governo (e o Banco de Portugal) trataram o caso do BES reflecte uma enorme “vontade de fugir às responsabilidades” pois o que devia ter feito, no Verão quente do banco de Ricardo Salgado, era ter tido “uma política firme para evitar a falência do BES”. Como? O professor, claro está, tem, tinha, a solução: pegar no dinheiro da troika e emprestá-lo ao BES. Esqueceu-se foi de dizer o que isso representava: essa recapitalização faria com que o Estado ficasse com a maioria do capital e, também, das responsabilidades financeiras do velho banco, mas sem a segurança de ter as contas auditadas, isto é, sem conhecer a dimensão do buraco. Talvez se salvassem os accionistas, gente de bem e de Cascais, como o professor, não se salvariam é os contribuintes, mas isso são detalhes com que não se incomoda. Antes sentencia que “vamos pagar muito mais pela falência do BES do que pelo BPN”, porque o BES era “100 vezes maior”. Naturalmente não sentiu necessidade de dizer como isso vai acontecer, uma vez que o BES não foi nacionalizado, ao contrário do BPN.
Mas como se não fosse suficiente a forma ligeira, tão trapalhona e longe da realidade como pomposa, como abordou temas como o BES e a PT, a sua prestação sobre o Orçamento de Estado de 2015 chegou a ser penosa, tal a dificuldade que mostrou ter ao lidar com os seus números, que trocou, baralhou e confundiu sem nunca se mostrar atrapalhado ou hesitante. Como todos os senadores que desfilam regularmente pelas televisões, o professor também acha que o Governo não sabe como fazer a reforma do Estado (no que até tem razão), mas coloca-se sempre naquele plano superior de quem sabe muito bem como essa reforma devia ser feita apesar de nunca partilhar os detalhes connosco, comuns mortais e vulgares plebeus.
Na verdade não há, nesta entrevista de Freitas do Amaral, nada que a distinga de forma substantiva de muitas outras que deu nos últimos anos, desde que foi promovido ao Olimpo dos “senadores” da República. Na verdade, nem terá sido mais disparatada ou mais pomposa de que muitas outras prestações de outros dos nossos “senadores”. Não mereceria duas linhas de comentário se não fosse altura de dizer “basta!” a este novo tipo de parolice nacional que é o desfile de figuras egrégias pelos nossos espaços mediáticos, todas elas apresentadas como venerandas figuras que pairam acima da nossa vulgaridade de cidadãos, todas ouvidas com uma reverência incompreensível, todas elas com muitas responsabilidades no estado a que o país chegou mas todas elas, também, escutadas como áugures insusceptíveis de contestação, de simples contraditório.
Não deve haver em Portugal um só antigo político com mais de 70 anos que não tenha, nos últimos anos, optado por um discurso apocalíptico. Alguns têm-se mesmo excedido nos seus exercícios de indignação. Nada demais, vivemos em liberdade e democracia. Demais é só tratá-los como se pertencessem a uma casta de iluminados pois, face ao desnorte e desequilíbrio que tantas vezes demonstraram (lembram-se da Aula Magna?). É caso para dizer que, com senadores destes, só nos restam, como sempre, os honrados plebeus para salvarem a República.
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