As passadas semanas, mesmo dias e até horas, têm sido um intenso e inolvidável exercício de formação de opinião pública, fruto da panóplia de acontecimentos, “casos e casinhos”, demissões e da evidente fragilidade política do governo, o que torna exasperante qualquer tentativa de digestão e posicionamento face ao atual estado de surrealidade política instalado.

Parece já impossível negar o pernicioso cenário de ingovernabilidade a que esta maioria nos tem acostumado, colecionando episódios demonstrativos de mediocridade governativa, desresponsabilização e falta de transparência que fomentaram a indisfarçável instabilidade atual – potenciada e potenciadora de maior instabilidade social e económica. A vulnerabilidade do Primeiro-Ministro (PM) e do governo é hoje indiscutível. Porém, contrastante com o que fora vaticinado pela máquina propagandista, aquando da vitória absoluta nas eleições, que logo escusou a passada incapacidade governativa do executivo no exercício de cedências a BE e PCP, no período de geringonça. Ao fim de pouquíssimos meses, em tempo recorde, António Costa mostra-se incapaz de “reconciliar os portugueses com a ideia das maiorias absolutas”, mas garantiu já um lugar na história da democracia nacional ao seu 3º Governo como exemplo dos “fantasmas das penosas maiorias absolutas do PS e dos estragos que o poder absoluto provadamente gera” – como, curiosamente, predisse no Observador no rescaldo das passadas legislativas.

A conquista de tal façanha somente se pode dever a ação própria do governo e são múltiplos os fatores que para tal contribuíram. Primeiro, pelo alheamento das necessidades do país, pela incapacidade reformista e de criação de um ecossistema estimulador de crescimento e produção de riqueza e pela evidente preferência por políticas de subsídios e assistencialistas. Segundo, pela cultura de abuso de poder patente nos obstáculos ao escrutínio e fiscalização da AR; pela soberba e jactância do discurso e das intervenções – veja-se a entrevista dada à Visão; pelo referencial de insensatez e insensibilidade política exibida na total ausência de cuidado e proteção dada à credibilidade e, até mesmo, honorabilidade das instituições do Estado. Terceiro, pelo comportamento taticista na escolha dos membros do governo, que indiscutivelmente expõe a nu um governo criado na base do nepotismo – notório na aparentemente infinita, complexa e intergeracional teia de relações familiares nos mais diversos organismos e cargos; pela incapacidade de prévia fiscalização de potenciais membros de governo, que acumulam episódios de evidente aproveitamento da Coisa Pública para benefício pessoal (responsabilidade que de forma infantil e apressada o PM tentou partilhar com o PR, ainda que contra a própria Constituição e natureza do regime); e, pelo sequestro do aparelho de estado pela rede de interesses do partido.

Enquanto isto se verifica, e o país precisa de competência e instinto reformador, parece existir uma real preocupação do PM com os equilíbrios internos do seu partido e com o legado que deixará – possivelmente o PS mais à esquerda de sempre, próximo de partidos com valores antagonistas aos valores base das democracias ocidentais. Infelizmente, para todos nós, poderá vir a ser a confirmação do afastamento do PS da sua predisposição histórica de partido “que construiu o sistema democrático e que criou as condições para o seu funcionamento com o PSD”.

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O infeliz e perigoso divórcio entre os portugueses e a classe política tem vindo a acentuar-se ao longo dos anos e verifica no quadro atual um agravamento, em parte muito devido ao sentimento de impunidade e desresponsabilização política e, inevitavelmente, dada a estagnação e empobrecimento relativo do país. De facto, e com exclusão de uns ou outros pontos positivos (seria demagógica a crítica cega) como a redução da dívida pública e controlo do défice, os portugueses observam valores de crescimento triviais, a degradação acelerada dos serviços públicos e a contínua exportação da geração mais qualificada de sempre (o descritivo podia continuar). Sendo tudo isto da esfera do real, e cabendo a cada um a sua reflexão, a verdade é que o prolongamento deste estado de coisaspara o qual a crise política atual contribui enormementepode quebrar irreversivelmente a crença nas instituições e poder político, o que contribuirá para a consolidação de partidos e intervenientes antissistema (um destes últimos, repetidamente potenciado pela estratégia comunicacional do Governo, que assim julga contribuir para o enfraquecimento de soluções à direita e ao centro) o que poderá resultar na disrupção e debilitação das estruturas e do quadro político-partidário que hoje conhecemos.

No campo do surreal está a exposição fantasiosa do Governo sobre um país das maravilhas, quando a realidade exibe um contexto de crise política extraordinário. Sob qualquer outro cenário que não o de ausência de uma alternativa clara e forte e da evidente inoportunidade e indesejada nova dissolução do parlamento pelo PR, este governo já teria caído e muitos dos seus fragilizados e aparentemente comprometidos membros também. Se a sua queda até pode parecer adiada e/ou inevitável, mais certo é que este executivo deve ao contexto político atual e às preocupações do PR com nova aventura eleitoral a sua sobrevivência.

Futuramente, poderemos vir a debater o impacto do PM e dos seus executivos não só para o país, mas igualmente na democracia nacional e talvez muitos se alinhem na ideia de que o PM poderá já ter reclamado um lugar na corrida, porventura ao pódio, de PM mais nocivo da história democrática. Por enquanto, as paredes tremem. As brechas começam a abrir-se. E, na permanência de um contexto de maioria absoluta, apenas podemos exigir escrutínio absoluto e ininterrupto. Muitos de nós nunca nos habituaremos a que seja de outra forma.