Se algo aprendemos neste fatídico mês de Agosto é que nem todo o país vai de férias. O Governo não nos parou de surpreender, inevitavelmente, de forma maioritariamente negativa. A coleção de casos daria para um debate de longas horas, quiçá para a elaboração de um manual de más práticas governativas. Os tiques de absolutismo (a fazer lembrar os tempos de Sócrates) e a soberba dos comentários tecidos por diversos ministros aparentam ter dado luz ao que já muitos alertámos, mas que tantos outros parecem não querer ver – a incapacidade reformista de um governo conduzido pela máxima do “agora é que vai ser”. Perdoar-me-ão por ser apenas mais um opinante a revisitar a tão badalada demissão da Dra. Marta Temido que parece ter vindo em parte acompanhada por uma vaga de saudosismo, agradecimentos múltiplos e até louvores pela coragem na condução do cargo, mas constatar esta realidade obriga a um balanço sério, baseado em factos e livre de propagandas políticas bacocas e demagógicas.

Não sou adepto da crítica pela crítica, de ostracizar seja quem for e estaria a ser intelectualmente desonesto se não reconhecesse que a Ministra da Saúde exerceu funções num momento e contexto único a que muitos não resistiriam. Outra coisa é optar livremente por tapar os olhos aos factos e não querer fazer uma análise informada do legado da ministra e do SNS que nos deixa – isso é apanágio dos ideologicamente cegos. Não o sendo, somente podemos em consciência concluir que o seu legado é ruinoso, que o SNS está em colapso e que esta demissão só peca por tardia.

Parece ser inegável que fora em tempos a figura mais popular do governo de António Costa (ao ponto de este a colocar na rota de sucessão), não é, contudo, menos verdade que era pouco consensual entre a opinião pública e que nem o combate à pandemia, que alguns julgam ter sido um sucesso o foi realmente, senão vejamos: mais de um terço das necessidades de cuidados de saúde não foram satisfeitas no primeiro ano da pandemia (entre os países da OCDE só a Hungria foi pior); fecho do SNS para praticamente todos os doentes não Covid, com demais doenças obliteradas e consequentes impactos ao nível de mortalidade e no desenvolvimento e agravamento de problemas de saúde em doentes crónicos; um balanço no combate à pandemia que dita um pior registo que a média da união europeia ao nível de infetados e mortes; gestão nefasta ao nível das medidas de isolamento e restrições impostas que, para além de ineficientes em muitos casos – Portugal chegou a estar entre os piores do mundo no combate à pandemia –, geraram problemas ao nível da saúde mental não devidamente acautelados; e até o único dossiê que foi efetivamente um sucesso, e que a Dr. Marta Temido não o pode reclamar como exclusivo seu, foi devido 1) à disponibilidade de vacinas, 2) a uma população disponível para a toma e 3) ao Almirante Gouveia e Melo e demais profissionais envolvidos na logística e distribuição após iniciais falhas e escolhas da Ministra. Assim termina o mito da propaganda oficial imposta.

Direcionamos as atenções para temas não afetos ao combate pandémico e logo vemos que a coleção de polémicas e má gestão política continua. A forma combativa como sempre geriu a pasta teve o seu auge na constante litigação e rotura de diálogo com os profissionais, um tanto ou quanto pouco resilientes a seu ver. A teimosia ideológica que sempre pautou a sua forma de fazer política fez dela uma ministra altamente estatista, quase radical na luta contra os privados e em constante campanha para acabar com as PPP que são, conforme fez constar o Tribunal de Contas, mais eficientes, mais baratas e com melhor nível de cuidados aos utentes (hoje, curiosamente, deixa o SNS mais dependente dos prestadores privados, hospitais privados e seguradoras privadas).

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Outro ponto chave foi não realizar aquilo que o PM tinha prometido: “2017 é, de uma vez por todas, o ano em que todos os portugueses terão um médico de família atribuído”, conseguindo aliás piorar os números então registados e hoje abandonar a pasta com 1,4 milhões de portugueses sem médico de família – um número recorde. Geriu com fé, e aparentemente não percebeu que mais recursos (como anuncia o PS), mais dinheiro para cima do problema sem uma estratégia clara não melhora por si só o SNS (conforme esclarece, porventura, o futuro ministro aqui), que aliás apresentou piores resultados, uma debandada geral dos profissionais de saúde pelos motivos que todos já conhecemos. Não nos esqueçamos do caos das urgências nestes últimos meses que não se cinge apenas ao encerramento das urgências de Ginecologia/Obstetrícia, mas a tantas outras (e as fatalidades conhecidas) e aos próprios meios de socorro que não chegam a tempo.

Ao nível da mortalidade, dizer o quê? Portugal é líder no excesso de mortalidade quando comparado com todos os estados-membros, apresentando um valor “quatro vezes superior à média europeia”. Por último, o novo Estatuto do SNS, que nem a confiança de Marcelo recolheu – retirando assim qualquer confiança política restante à Ministra –, parece vir só acrescentar mais uma camada burocrática a um sistema que precisa de agilidade e não de maior complexidade.

Volvidos 1414 dias, a falta de condições (que pouco esclarece) levou à demissão que, desta vez, teve de ser aceite, imagine-se. O que é já evidente é que a longa ausência de confiança política por parte de António Costa (cujo modus operandi parece ser o de deixar queimar os seus ministros para que não se queime ele mesmo) em nada contribuiu para a manutenção da Dr. Marta Temido, cuja recondução fora já um erro. Passados sete anos, o governo nada tem para apresentar e o nível de irracionalidade do PM chega a ser atroz. O tema é político, estratégico e de visão. Mas Costa teima, aparentemente, pela arrogância de manter políticas e de antemão comunicar que apenas procura “mudança de personalidade, mudança de energia, mudança de estilo” – procura um pau mandado, portanto – não sendo capaz de reconhecer o estado calamitoso a que chegou o SNS pelas mãos das suas políticas e do seu governo. Se a Dr. Marta Temido foi uma ministra incapaz, o PM foi um líder de governo igualmente inábil por partilhar das mesmas responsabilidades da sua Ministra e por deixar o Titanic a meter água enquanto gere a sua agenda. Ficamos em banho-maria, certos de que segunda-feira nada estará resolvido. Mais certos ainda de que novas políticas e reais reformas nunca acontecerão com governos do PS, muito menos com António Costa.