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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Sérgio Sousa Pinto: "Em Portugal, somos todos filhos da miséria, podemos escavar que o resultado é sempre o mesmo"

O político Sérgio Sousa Pinto é também desenhador. Tem um livro para o mostrar e é aí que começa esta conversa sobre BD, democracia, o politicamente correto e um país entre a esquerda e a direita.

Esta não é uma entrevista de um jornalista (que não sou) a um político. É uma conversa entre dois amigos. Ao Sérgio unem-me laços de admiração e camaradagem. Ambos partilhamos a convicção de que é possível salvaguardar a amizade mesmo quando as opções políticas não coincidem. Desde que, bem entendido, as nossas discordâncias convivam “ao pleno sol da liberdade” (como dizia Michel Foucault).

A nossa conversa decorreu a dois tempos. O primeiro, num gabinete da Assembleia da República, o segundo, no Old Vic, um bar clássico da zona da Avenida de Roma, em Lisboa, com sofás de veludo, snooker e mesas de madeira escura, com dois botões incrustados no rodapé alto, um para os clientes chamarem o empregado, outro para regular a intensidade da luz que incide sobre cada mesa.

Sérgio Sousa Pinto não é apenas um político. A sua atividade intelectual multiplica-se, em cadências variadas, pela cultura jurídica, histórica, literária e artística. Foi esta última — revelada no seu talento especial para o desenho, com a publicação recente do livro Fui Tão Feliz com a Minha Thompson (Avenida da Liberdade Editores) — que me levou a telefonar-lhe e a propor-lhe esta conversa.

A capa de “Fui Tão Feliz com a Minha Thompson”, de Sérgio Sousa Pinto (Avenida da Liberdade Editores)

Começo pelo título. Queres explicá-lo?
A Thompson é a famosa metralhadora dos gangsters, com um carregador redondo. É uma peça típica do meu imaginário infantil, que se reflete nos meus bonecos. As armas são os adereços das personagens do meu universo juvenil, dos cowboys, dos gangsters e dos detectives.

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Referes-te ao chamado cinema noir clássico?
Sim. Estive a rever o livro, depois de publicado, e pela primeira vez dei-me conta da influência do cinema negro na minha estética. Faço muitos desenhos a partir de imagens paradas de filmes norte-americanos de série B. Os filmes com o detetive Philip Marlow, adaptados dos livros do Raymond Chandler, os filmes com o James Cagney ou com o Edward G. Robinson, como o “Little Caesar”.

Dentro desse género, quando era miúdo, lembro-me de ficar particularmente fascinado com os olhos saídos das órbitas do ator Peter Lorre.
Sim. A minha personagem preferida do cinema negro é o Robert Mitchum, mas o Peter Lorre protagoniza o “M — Matou”, do Fritz Lang, talvez o meu filme preferido da história do cinema. Gosto de quase todos os expressionistas alemães. O Murnau, o Erich Von Stroheim, um génio esquecido ou incompreendido. Gosto da estética do preto e branco, de transpor a luz do cinema para o preto e branco do pincel. De resto, os meus desenhos são quase todos feitos com pincel e tinta-da-china.

Filmes onde o fumo dos cigarros e os copos de uísque são uma presença constante, como nos teus desenhos.
Ao contrário dos livros, não tenho esses filmes organizados na cabeça. Continuo a vê-los com a mesma sofreguidão. Os clássicos, sobretudo. Depois de ver os bons, continuei a ver os de segunda e terceira linha. A explicação acho que está no preto e branco. Dos italianos gosto de quase todos, nem vale a pena distinguir… talvez o Antonioni a preto a branco.

E os filmes a cores?
Também. Por exemplo, “O Homem que Gostava de Mulheres”, do François Truffaut. A minha vida seria mais pobre se não tivesse visto este filme.

Porquê?
O filme conta a história de um cientista que apanha uma doença sexual qualquer, que afecta também a sua memória. Então, para estimular a memória, decide escrever um livro onde relata as suas aventuras sexuais com mulheres. Durante o processo, acaba por se envolver com a editora que lhe vai publicar o livro. Hoje, era impossível fazer um filme como aquele. Sobre o Truffaut abater-se-ia uma chuvada de julgamentos politicamente correctos. Mas um dos meus filmes preferidos é o “Barry Lyndon”, do Stanley Kubrick. Muitas cenas de interiores foram filmadas à luz de velas, sem recurso à electricidade…

Algumas dessas cenas podiam ter sido pintadas pelo artista inglês do século XVIII William Hogarth.
Sim, talvez por isso goste tanto desse filme. Mas também de “O Direito do Mais Forte à Liberdade”, do Fassbinder — o título é irónico, porque ele está do lado do derrotado. Ou de “A Morte de um Apostador Chinês”, do John Cassavetes, com o Ben Gazzara, ou dos filmes do Hitchcock. O Hitchcock, talvez muita gente não saiba, desenhava os storyboards dos seus filmes.

"Cheguei a conhecer o Moebius em Bruxelas, num jantar. Havia lá, em Bruxelas, uma das maiores ou melhores livrarias de banda desenhada do mundo, que eu costumava frequentar. Um dia, o Moebius apareceu e acabámos todos por ir jantar, eu, ele e os donos da livraria."

E no desenho propriamente dito, quais são as tuas grandes influências?
Desde logo, a linha clara do Hergé, e dos seus seguidores, como o Edgar Jacobs, que a partir de certa altura coloriu os livros do Tintim e refez o ambiente dessas histórias. Embora nunca me tenha interessado muito pela cor. Fui também muito influenciado pelo Hugo Pratt, o Jacques Tardi, o Jijé [Joseph Gillain], que a certa altura assumiu os desenhos do Spirou e introduziu nesses álbuns a personagem Fantasio, o melhor amigo do Spirou e seu companheiro de aventuras. Gosto muito do Pratt, mas o Pratt não era possível sem o Milton Caniff.

De onde é que vem esse teu fascínio pela linha clara?
O fascínio pela linha só me trouxe dissabores na escola de arte, onde por regra se embirrava com os contornos. O contorno feito pela linha é uma abstração, não existe na realidade. Mas essa abstração é a matéria-prima da BD. O contorno não existe na natureza. Nas escolas dizem-nos para fazer uma cara com contrastes de luz e de sombra e de volumes, mas o meu métier é a linha. As BD de que eu mais gostava eram as mais depuradas. Nasci no mundo da BD e, sobretudo, da linha clara, portanto, o traço é quase tudo. E os volumes e as sombras resolvi-os com o pincel e a tinta-da-china. Muitas pessoas que folheiam o meu livro dizem que parecem desenhos do Corto Maltese. Isso é um elogio imerecido. O Pratt resolve os seus problemas gráficos e narrativos com recurso à linha e a pinceladas da tinta-da-china, ou seja, é uma linguagem abstrata, como o Tintim é uma linguagem abstrata.

E o Moebius, ou Jean Giraud, que foi aluno do Jijé? Aliás, foi este último quem sugeriu o nome do Moebius para desenhar a famosa séria de cowboys, protagonizada pelo tenente Blueberry.
O Moebius é um grande mestre. Gosto muito de “O Incal” e de “A Garagem Hermética”. Cheguei a conhecê-lo em Bruxelas, num jantar. Havia lá, em Bruxelas, uma das maiores ou melhores livrarias de banda desenhada do mundo, que eu costumava frequentar. Um dia, o Moebius apareceu e acabámos todos por ir jantar, eu, ele e os donos da livraria. Disse-lhe que achava que o maior desenhador da atualidade era um americano chamado Cris Ware e o Moebius concordou. Disse-me, inclusivamente, que tinha feito muito pela divulgação do trabalho dele.

Para quem gosta tanto de banda desenhada, a sensação de viver em Bruxelas deve ser como a de um hipocondríaco que mora dentro de uma farmácia.
Durante esse período [enquanto foi eurodeputado, entre 1999 e 2009], aproveitei para me inscrever num curso pós-laboral chamado Cours de Promotion Sociale, o equivalente a um curso para trabalhadores-estudantes. Ficava no Institut Saint-Luc, onde o Hergé tinha dado aulas de BD. Em Bruxelas, estudei também na escola superior de artes visuais de La Cambre. O exame de admissão implicava fazer desenhos durante uma semana. No final, tinha de desenhar três quadros de que gostasse, reproduzi-los em desenho. Escolhi “A Carga da Cavalaria Vermelha”, do Malevich, o “Colosso”, do Goya, e o “Retrato de Monsieur Bertin”, do Ingres. Eram as imagens que tinha mais presentes no espírito, para as poder reproduzir de cabeça. Porque não podíamos ver os quadros. Escolhi esses porque tinha uma imagem visual deles e a execução era compatível com o tempo. Só por isso. Ainda por cima tinham de ser adaptados ao preto e branco.

Se tinhas uma imagem visual desses quadros foi porque, em dada altura, eles te marcaram bastante.
O “Monsieur Bertin” exprime, num único retrato, a rapacidade e a avidez de um grande capitalista do século XIX. Implacável, avaro, ganancioso, explorador. Está ali tudo. Podia ser um capitalista de agora. Com a diferença de que os de agora usam t-shirt preta, vão ao ginásio, estão todos fit, e financiam o Partido Democrático norte-americano. E não são apenas os homens da banca, são todos os megamilionários de Silicon Valley, da Amazon, do Facebook, etc. Todos eles acham que compram a absolvição financiando os movimentos woke [termo político de origem norte-americana que se refere a todas as ideias da chamada política de identidade e às questões de justiça sociais a ela associada, em particular no que diz respeito aos preconceitos e à discriminação raciais, ao privilégio branco ou ao sexismo]. Apesar das escolas por onde andei, sou um autodidata e formei-me nessa estética noir. É a que eu sei fazer e é a que gosto de fazer. O que não quer dizer que não fique siderado com as coisas que outros fazem completamente diferentes. Por exemplo, o Moebius resolve os seus problemas gráficos com aquele tracejado, que dá espessura e tridimensionalidade às representações.

E com o Goya, qual é a tua relação com esse quadro?
Tive uma grande sorte na minha geração. Quando tinha uns 16 ou 17 anos fizeram-se umas obras profundas no Guggenheim de Nova Iorque, e a coleção inteira, incluindo as reservas, as coisas que estavam nos armazéns, estiveram seis meses no Museu Rainha Sofia e, depois, em Tóquio. Nunca ninguém tinha visto aquilo. Nessa altura, os meus pais levaram-nos em peregrinação ao Rainha Sofia.

Tens influências portuguesas nos teus desenhos?
Sim, claro que sim. Os mais evidentes são o Stuart de Carvalhais e o Fernando Relvas. O Stuart é um caso à parte, singular. Li-o no liceu. Se tivesse nascido na Bélgica teria sido um dos maiores autores de BD do seu tempo. Gosto porque ele também usa pincel e tinta-da-china. Convém lembrar que, naqueles tempos, tu andavas na Feira da Ladra e podias encontrar desenhos dele à venda. Eu comprei um. Uma cena numa estação de comboios. Uma coisa espantosa no Stuart é como ele desenha bem as mulheres.

Que são também uma presença forte nos teus desenhos.
No exame de admissão a La Cambre tive de fazer desenhos de mulheres nuas, com modelos nus ao vivo. Desenhar uma mulher é um exercício particularmente difícil. Basta pensar na BD belga clássica. Quase não aparecem mulheres e, quando aparecem, são desenhadas de uma maneira esquemática, quase fazem parte, apenas, do décor. No Stuart não, elas são o centro. Vê-se que tinha prazer em desenhar mulheres. Um tipo que faz o que eu faço, só pode ter admiração pelo Stuart. Ele pegava no pincel e fazia o que queria com ele. As mulheres do Stuart não são bonecos, têm vida e sensualidade. Só faz desenhos como aqueles — varinas, uma mulher a ser calçada por um cavalheiro, etc. — um tipo que gosta de mulheres. E que passou muito tempo a observá-las. A anatomia humana pode reduzir-se de formas muito esquemáticas. Em última análise, as pernas são dois tubos verticais. No Stuart, é o oposto. Os belgas são mais abstratos, mais esquemáticos. Também é esse o encanto deles. As mulheres do Stuart não têm nada que ver com as mulheres do Tintim ou do Blake & Mortimer. Talvez não fossem permitidas naquela altura. Os desenhos de mulheres com um mínimo de sensualidade, muito próximos da sua verdade física, eram considerados impróprios para leitores infantis, seriam incompatíveis com a literatura infantil. Mas o Stuart é um gigante. Ninguém desenhava como ele neste país. Coloco-o ao nível dos melhores desenhadores europeus, sem qualquer hesitação. E o Stuart tem também muitos desenhos que se aproximam da linha clara.

E o Fernando Relvas?
O Relvas publicava, na revista Tintim, quando eu era miúdo, uma série de que gostava muito que era o espião Acácio. Também tenho um desenho original do Relvas. Foi o meu irmão [Rui Sousa Pinto] que me ofereceu. Estão os dois pendurados em casa. Os desenhos realistas do Relvas não me interessam muito, dos bonecos é que eu gosto.

"Sempre fui muito reservado em relação aos meus desenhos. E desenho há mais tempo do que escrevo. O meu irmão também desenhava, e eu tinha amigos que também desenhavam. Não era nada do outro mundo desenhar."

A certa altura, no teu livro, aparece a frase “Importante: aprender a desenhar cavalos”. Desenhar cavalos é mais difícil do que desenhar mulheres?
Como gosto muito de desenhar cowboys, convinha saber desenhar uns cavalos de jeito. A dificuldade é que, no quotidiano, tu não te cruzas assim com tantos cavalos e não os podes observar pormenorizadamente. Sem observação não há desenho. Não é muito prático ir para o hipódromo do Campo Grande fazer croquis de cavalos. Neste livro aparece um desenho meu do Talleyrand, a quem chamavam o diabo coxo [político e diplomata francês da transição do século XVIII para o XIX]. A anatomia do Talleyrand é a anatomia de um homem, e eu estou farto de observar homens. Quando desenho figuras humanas faço-o com base em todos os seres humanos que vejo diariamente. O Talleyrand que aparece no meu desenho é fruto da minha imaginação. Por exemplo, ele tinha o cabelo curto e o meu tem o cabelo comprido. Inventei-o a partir do homem que ele efectivamente foi, ou como eu o vejo. O Talleyrand do Sacha Guitry, fisicamente, também não tem nada que ver com o original.

Em termos editoriais, o teu livro tenta reproduzir a ideia de um vulgar caderno preto de desenhos…
Procurámos que o livro lembrasse um bloco normal com páginas brancas, cheias de desenhos, feitos despreocupadamente. Sempre fui muito reservado em relação aos meus desenhos. E desenho há mais tempo do que escrevo. O meu irmão também desenhava, e eu tinha amigos que também desenhavam. Não era nada do outro mundo desenhar.

A ideia de publicares estes desenhos foi tua?
Quem teve a ideia do livro foi o Alexandre Vasconcelos, o editor. Telefonou-me e disse que queria publicar uma coisa minha. Eu disse-lhe que não tinha nada escrito, só desenhos. Não há um único desenho do livro que tivesse sido feito com vista à publicação.

Este livro é uma pequena seleção de uma massa caótica de desenhos.
Os desenhos foram todos escolhidos pelo João Catarino, que é o organizador e quem assina o prefácio. Discutimos as escolhas, havia alguns que eu achava que deviam estar e ele fazia questão que outros estivessem, mas como não podiam vir todos, a discussão saldou-se numa vitória esmagadora do Catarino sobre mim.

"A minha vida, como a de quase toda a gente, é dominada por acasos e acontecimentos fortuitos"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Defines o teu livro, na introdução, como um “pequeno universo gráfico, razoavelmente íntimo”. Nele aparecem alguns retratos de pessoas que te são próximas?
Aparecem os meus filhos. Dois rapazes. Um vai fazer 16 e outro tem 17. Que não se interessam muito pelo desenho. Aparece também um senador do Peru, de quem fiz o retrato enquanto estávamos numa reunião. De qualquer modo, este livro não conta uma história. São apenas os desenhos escolhidos pelo João Catarino. Quase tudo o resto são desenhos feitos a partir da minha imaginação. Como aquela figura de militar, com a legenda “Argentina, 1976”. É uma referência ao golpe de Estado de direita que derrubou Isabel Perón, em 24 de Março de 1976, e que impôs, em substituição, uma Junta Militar. Mas o desenho não corresponde nem ao Videla, nem ao Massera, nem ao Agosti [os três líderes da referida Junta Militar]. É um boneco imaginário, que poderia até reunir, em si, essas três figuras. Mas se os desenhos não falarem por si, é porque são francamente maus. E há também desenhos de edifícios de Lisboa, chamados urban sketches, que fiz quando estava na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde também estudei.

“Já desenhei muito no plenário da Assembleia da República”

Estudaste em várias escolas de desenho, não és apenas um autodidata, como disseste antes.
Talvez. Mas também não sou um desenhador profissional. Quando era jovem, e andava no jardim-infantil Pestalozzi, a minha mãe foi chamada à escola, para lhe dizerem que eu devia ser seguido por uma metodóloga. O Pestalozzi era uma escola especial que valorizava muito o lado plástico, que educava os miúdos para a liberdade e para a autonomia. Foi fundada pelo Agostinho da Silva e a Lucinda Atalaia. Mas ainda hoje não sei o que é uma metodóloga. O certo é que fui para o atelier da Cecília Menano, aqui na Avenida D. Carlos I. Tinha uns 12 anos. Desenhava tudo o que queria, livremente, e ela, depois, fazia uns comentários. Ia uma vez por semana, durante mais de uma hora, talvez duas. Foi na altura das eleições presidenciais do Mário Soares e do Freitas do Amaral. Foi aí que me iniciei na pintura a óleo, mas nunca evidenciei especial talento. Ainda frequentei essas aulas durante uns anos.

Com exceção de Álvaro Cunhal, não há grande tradição, em Portugal, de políticos desenhadores.
Gosto muito dos desenhos do Álvaro Cunhal. Como também gosto muito dos óleos do rei D. Carlos, mais do que das aguarelas. O D. Fernando II e a D. Maria Pia também desenhavam. Mas não particularmente bem, na minha opinião.

Costumas desenhar nos plenários da Assembleia da República?
Já desenhei muito no plenário. Depois da publicação deste livro, encontrei um caderno cheio de desenhos dos plenários, das estátuas que decoram os plenários. Nas galerias do primeiro piso, onde se sentam as pessoas do público, há seis estátuas que representam a Constituição, a Lei, a Jurisprudência, a Eloquência, a Justiça e a Diplomacia. São todas boas, tirando uma, que é medonha, que é a estátua da Justiça, do Costa Mota.

E as outras obras de arte da Assembleia da República? Há alguma que te pareça especialmente boa?
As melhores são, de longe, as pinturas do Columbano, que estão nos Passos Perdidos. Representam as grandes figuras do liberalismo. Há um curioso quadro do Sequeira, que é um retrato mais ou menos alegórico do Intendente Pina Manique, que está enfiado num recanto obscuro e que devia estar no Museu Nacional de Arte Antiga. O mesmo podia dizer do único retrato de Sir Thomas Lawrence que existe em Portugal, um retrato de D. Maria II, e que está algures no Palácio das Necessidades, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas que devia estar no seu local de origem, exposto ao público, no Palácio de Queluz. Na verdade, não se sabe se esse retrato da D. Maria II é original ou se é uma cópia, se foi feito pelo próprio Thomas Lawrence ou por alguém do seu atelier. Aparentemente, faz parte do acervo do Museu Nacional de Arte Antiga e está cedido ao Palácio das Necessidades. E a questão é saber se esse quadro deve estar a decorar o gabinete de um funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros ou num museu. No Parlamento, não gosto das pinturas do Salão Nobre, mas por razões artísticas, não pelas mesmas razões da ex-deputada Joacine Katar Moreira, do politicamente correto. Quadros maus há um pouco por toda a parte.

"Como toda a gente, também sofri com os programas de televisão do Vasco Granja. Tínhamos de ver primeiro os desenhos animados da União Soviética, que eram de resto maravilhosos, enquanto esperávamos pelos dos EUA. Ainda hoje fico pasmado a ver os desenhos do Tex Avery ou do Popeye, dos anos 1930."

Como é que avalias a edição de BD em Portugal?
Era excelente, antigamente. Sempre tivemos uma excelente edição de BD em Portugal, que caiu a pique nos últimos anos. Era uma espécie de reduto de gente culta. A sociedade portuguesa era uma sociedade muito desigual e a BD era uma coisa da burguesia cultivada, da geração anterior à nossa.

Dizes mesmo, na tua introdução, que o universo editorial português, hoje, está excessivamente concentrado no lixo comercial.
As editoras já não têm um Dinis Machado que as ajude a selecionar o que deve ser publicado. A BD era divulgada em Portugal por gente da categoria do Dinis Machado.

Ou do Vasco Granja. A nossa geração cresceu a ver a banda desenhada divulgada pelo Vasco Granja, sobretudo na televisão, com o programa “Cinema de Animação”. Li há tempos que o Vasco Granja foi o primeiro a utilizar, em Portugal, a expressão “banda desenhada”, tradução literal do francês bande dessinée. Antes disso, dizia-se histórias em quadrinhos ou em quadradinhos.
O Vasco Granja tinha, salvo erro, um barracão para os lados da Praça da Alegria onde revendia livros em segunda mão, incluindo BD. Era uma espécie de gruta do Ali Babá.

Não sei se sabes, mas nesse quiosque, além de cautelas, o Vasco Granja vendia livros clandestinos. Foi, nessa altura, um dos grandes “traficantes” de literatura proibida. Tal como o Dinis Machado, o Granja foi diretor da revista Tintim, quando foi trabalhar para a Bertrand. Nessa altura, dirigia também as coleções de BD da Bertrand e foi ele quem introduziu os livros do Corto Maltese em Portugal. Quando o publicou na revista Tintim, a preto e branco, rompendo com a tradição da linha clara, choveram as cartas de protesto dos leitores.
Como toda a gente, também sofri com os programas de televisão do Vasco Granja. Tínhamos de ver primeiro os desenhos animados da União Soviética, que eram de resto maravilhosos, enquanto esperávamos pelos dos EUA. Ainda hoje fico pasmado a ver os desenhos do Tex Avery ou do Popeye, dos anos 1930. Dizem-me muito mais do que os do Walt Disney. O Popeye já é uma linha clara ao estilo do Hergé. E estava completamente fora das categorias em que veio a transformar-se o estereótipo da BD nos EUA. A Olivia Palito é uma maravilha gráfica. Faz lembrar os desenhos que se fizeram mais tarde, de um tipo holandês, também da linha clara, chamado Joost Swart. Aqui há um ano ou dois, recomendei ao Guilherme Valente, da Gradiva, que publicasse um belíssimo livro de BD, o Gus, do Christophe Blain, e ele publicou. Até escrevi uma pequena introdução. É do melhor que há e parece que não vendeu quase nada.

Mais do que ao Tintim, a minha afeição ia toda para o capitão Haddock, um marinheiro rabugento que dava plena expansão às suas fúrias despejando palavras de forte expressividade. Como disse Jacques Marny, no seu Sociologia das Histórias em Quadradinhos (Bertrand), o capitão Haddock “escolhe cuidadosamente as palavras, como um poeta. Sim, como um poeta, gosta das palavras que soem bem, de palavras sonoras e raras”.
O Haddock tem mais espessura psicológica. O Tintim é quase uma figura não humana. É uma espécie de versão idealizada do escuteiro. É um cabide onde o Hergé pendurou um conjunto de qualidades que ele considerava que deviam ser o apanágio da juventude cristã. O Hergé era um homem com características depressivas. Não se levava muito a sério como artista, era um pouco como o John Ford, um génio que não se levava demasiado a sério. Ainda por cima, o passado dele deve ter-lhe deixado marcas. O colaboracionismo, o fascismo…

Como aliás aconteceu com vários escritores contemporâneos do Hergé, a começar no Céline e a acabar no Robert Brasillach, passando pelo Pierre Drieu La Rochelle, o Paul Morand…
O Hergé fez as capas para os livros do Léon Degrelle, o líder dos fascistas belgas, os chamados “rexistas”, e um colaborador dos nacional-socialistas. Além de, posteriormente, ter sido um dos fundadores, na Bélgica, do negacionismo do Holocausto. Agora tenta-se dizer que é necessário salvar a honra de Hergé relativamente ao comportamento dele nesse período. Mas foi como foi, o Hergé era um fascista, como o Céline também era. As personagens estrangeiras que aparecem no Tintim, como o grupo de cientistas de A Estrela Misteriosa, são quase todas de países que eram próximos do Eixo, inclusive o professor de Coimbra. E os maus são quase sempre norte-americanos e judeus. Devidamente embelezados com um nariz adunco, convexo e grosso na base, com a ponta em curva, decaída sobre os lábios, que corresponde ao estereótipo semita.

A primeira tradução das aventuras do Tintim, a nível mundial, para outra língua, foi em português, em 1936. Apareceu na revista O Papagaio, a primeira publicação de BD em Portugal, promovida pela Rádio Renascença, então dirigida por Adolfo Simões Müller.
Sabes como é que o Simões Müller pagava os direitos ao Hergé? Em latas de sardinha, que enviava para a Bélgica. O Corto Maltese também foi vítima de um processo politicamente correto. Num livro chamado Corto Maltese et ses crimes. Apesar de Corto Maltese lutar contra todos os fundamentalismos e contra todos os abusos de poder, incluindo o racismo, veio alguém acusá-lo de ser demasiado violento, de ser um sanguinário, um assassino que matou dezenas de seres humanos, de todas as maneiras possíveis, com armas de fogo, facas, bombas, metralhadoras, sei lá que mais.

"O livro da minha vida é o Em Busca do Tempo Perdido. Li-o em português na tradução do Pedro Tamen. Os meus escritores preferidos não têm nada que ver com os meus desenhos. O Proust, o Koestler, o Tolstói, o Céline."

Mas não achas que isso enriquece o nosso conhecimento da personagem do Corto Maltese? Se eu disser que nos primeiros álbuns do Tintim encontramos traços de racismo, isso não anula por completo a personalidade do Hergé, nem aquilo que defendia nos seus desenhos, como os valores da amizade, da aventura, da viagem, do compromisso com os mais fracos, da luta contra os déspotas e os ditadores.
O Corto Maltese é uma mistura de herói e de anti-herói, é uma personagem densa e politicamente incorreta, como hoje se diria. O Corto Maltese era totalmente indiferente ao espírito do tempo, aos ventos políticos dominantes. A Balada do Mar Salgado é de 1968 ou 1969, se não estou em erro, e grande parte da obra do Hugo Pratt é da década de 1970. O Corto Maltese foi durante muito tempo uma personagem tão difícil de catalogar que conseguiu escapar às cruzadas morais, que são uma marca do nosso tempo. O Corto Maltese é uma obra-prima em termos literários, líricos e gráficos. O exercício de tentar enclausurá-lo politicamente é ocioso.

Se tivesses de o qualificar politicamente, como é que o caracterizarias?
Diria que era um anarquista ou libertário de direita. É um homem sem convicções e sem ilusões. Mas, ao mesmo tempo, está impregnado de um sentido de decência que nos remete para o ideal medieval de cavalaria. O Corto Maltese, quanto a mim, é alguém que gosta das pessoas sem confiar na natureza humana, é um homem sem ilusões quanto aos homens. Mas respondo-te com um diálogo entre o Corto Maltese e o Rasputine, que é uma espécie de seu amigo, outro cavalheiro de fortuna, que lhe diz assim: “Eu sou teu amigo”. E o Corto Maltese responde-lhe: “Tu não és amigo de ninguém”. E o Rasputine diz-lhe: “Podia matar-te”.

As duplas são uma constante na banda desenhada, o Tintim e o Haddock, o Spirou e o Fantasio, o Blueberry e o Jimmy McClure (um bebedolas, como o Haddock), Astérix e Obélix, Lucky Luke e o seu cavalo, o Jolly Jumper. Porque é que achas que é assim?
É muito simples. Para as personagens se poderem revelar através dos diálogos.

“Uma coisa marcante para mim, totalmente fortuita, foi a minha amizade com o Mário Soares”

Há algumas referências literárias que tenham influenciado os teus desenhos?
Nunca tive o atrevimento de ser argumentista dos meus desenhos. Entre os escritores, destaco o Victor Hugo, que era um esplendoroso desenhador. Há um livro com os desenhos dele, onde percebemos que ele era, ainda, um romântico. São assombrosos. Tipos como ele são de uma época em que o desenho fazia parte da cultura geral, da educação integral. Vivemos agora numa época em que toda a gente acha que pode escrever, mas ninguém se atreve a desenhar com o pretexto de não saber desenhar, como se o facto de não saber escrever impedisse alguém de escrever e publicar. A especialização acabou com todas as disciplinas que antes eram levadas a sério como indispensáveis a uma formação liberal, como antigamente se dizia.

Alguma vez pensaste adaptar obras literárias ao desenho?
Tentei adaptar uns contos do Graham Greene e O Estrangeiro, do Camus. Em relação ao conto do Graham Greene, já não lembro do que tratava, o do Camus é um livro que me acompanha desde sempre. Por causa da questão do absurdo da existência.

"Gosto muito dos desenhos do Álvaro Cunhal. Como também gosto muito dos óleos do rei D. Carlos, mais do que das aguarelas. O D. Fernando II e a D. Maria Pia também desenhavam"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Já que falamos de literatura, quais são os teus autores preferidos?
O livro da minha vida é o Em Busca do Tempo Perdido. Li-o em português na tradução do Pedro Tamen. Depois, por causa do Proust, fui ler uma série de autores que nunca tinha lido e que muito me deliciaram. Por exemplo, as memórias de Saint-Simon ou a Madame de Sévigné. Foi a minha maneira de tentar prolongar o livro do Proust, depois de o ter acabado de ler. As personagens do Proust são como as do Tolstói, acompanham-nos a vida toda. O irónico final em que a viúva Madame Verdurin acaba casada com o duque de Guermantes, as tropelias do barão de Charlus e a conclusão final, de que a vida é uma corrida em direção ao cemitério, reduzindo a pó todas as frivolidades mundanas. O melhor livro de todos, dentro do Em Busca… é o Um Amor de Swann. O amor de Charles Swann por Odette de Crecy. É um amor romântico e aristocrático por uma cocote de sociedade, em que o leitor sofre mais do que o próprio Charles Swann.

Nunca pensaste desenhar algumas dessas personagens?
Os meus escritores preferidos não têm nada que ver com os meus desenhos. O Proust, o Koestler, o Tolstói, o Céline. O Céline, depois da Viagem ao Fim da Noite, não precisava de ter escrito mais nada. Há imensos livros que não me lembro se li ou não. Então, adotei esta regra: só assino os livros que li. Já sei que é uma mensagem para mim próprio.

E autores portugueses?
Gosto da Agustina Bessa-Luís. Tenho uma relação especial com A Sibila, livro que identifico com a minha avó materna, que ainda conheci e que era do Douro. Toca-me tudo nesse livro, a descrição das paisagens, os casarões do Douro, que parecem navios naufragados na Serra, a tenacidade dos lavradores, que constroem qualquer coisa a partir de quase nada. Até ao século XVII, até ao comércio do vinho do Porto, o Douro era das regiões mais miseráveis do país, onde se praticava uma agricultura pobre de montanha. Que foi o que se continuou a fazer fora das zonas do benefício. Porque há outro Douro, que ficou fora do benefício, o chamado Douro verde, cujo valor é diferente do das vinhas produzidas dentro da região demarcada. Essa minha avó vivia em Lisboa, vivíamos todos em casa dela. A personagem da Sibila lembra-me muito essa minha avó.

Entrevistei a Agustina na casa dela em Lisboa, que ficava na Lapa. Disse para me sentar num sofá, em frente dela. Tinha uma manta por cima dos joelhos, parecia uma avozinha dos contos infantis. Durante quase todo o tempo que ali estive, fez-me contar a história toda da minha família. Eu fui entrevistá-la, mas acabou por ser ela a entrevistar-me…
Ela estava a esvaziar-te. É a curiosidade do autor. O maravilhoso dos livros da Agustina é que, mesmo nos romances que são pouco conseguidos, a prosa redime-os sempre.

"O Sá Carneiro e o Soares são fáceis de desenhar, porque têm feições mais pronunciadas. Se eu fizer um perfil do Sá Carneiro, percebes logo que é o Sá Carneiro. Não tenho grande inclinação para retratista ou caricaturista. O Sá Carneiro e o Soares mereciam estátuas decentes. A da Praça do Areeiro devia ser substituída."

Referiste há pouco o Tolstói. Sei que tens também uma relação especial com o Guerra e Paz. Porquê?
A minha vida, como a de quase toda a gente, é dominada por acasos e acontecimentos fortuitos. Uma coisa marcante para mim, totalmente fortuita, foi a minha amizade com o Mário Soares. E o Soares, um dia, disse-me assim: “Ó Sérgio, você lá leu tudo. E literatura?” Era um óbvio exagero. “Já leu o Guerra e Paz?”. “Não”, respondi. “Então leia o Guerra e Paz. Se quiser salte os episódios das batalhas”. Claro que não saltei, e ainda bem que não saltei, porque talvez sejam os mais importantes do livro. É um livro que também tem duas personagens que me acompanham toda a vida: o príncipe Andrei Bolkonsky e o general Kutuzov.

Quando se fala do Guerra e Paz lembro-me sempre da comparação que o Tolstói estabelece entre o exército de Napoleão, arrastando-se penosamente em direção a Moscovo, depois da derrota na Batalha de Borodino, e uma águia, julgo, ferida mortalmente em pleno voo, que continua a voar, apesar de morta, e cuja velocidade, enquanto vai caindo no espaço, aumenta à medida que se aproxima da terra.
Nunca estudei seriamente a figura do Tolstói, mas acho que ele estava embebido das ideias de um filósofo anti-Iluminismo, o Joseph de Maistre. O De Maistre argumentava contra a razão das Luzes e contra a razão da Revolução Francesa. E o Tolstói, que também é um místico, achava que os acontecimentos obedecem a uma dinâmica misteriosa, na qual a razão não se intromete. Por isso é que as cenas das batalhas são tão importantes. A dinâmica misteriosa permanece inescrutável. Na batalha, não se percebe quem está a vencer e quem está a ser derrotado. O vencedor não é matéria de facto, é uma convenção. É demasiada coincidência com o De Maistre para o Tolstói não o ter lido. Há outro livro, que foi adaptado ao cinema, que diz basicamente a mesma coisa, que é O Coração das Trevas, do Joseph Conrad [escritor inglês de origem polaca — Józef Teodor Konrad Korzeniowski era o seu nome de batismo — nascido na Ucrânia em 1857], de onde saiu o filme “Apocalipse Now”, do Coppola. Também aí o De Maistre volta à vida, contra o século das Luzes. O melhor dos homens, o Kurtz, converte-se numa besta violenta para restaurar o princípio da ordem. Mas a novidade aqui está nesta ideia do melhor dos homens. No meio do caos não se vislumbra o bom selvagem do Rousseau. A ordem, para ser restaurada, precisa da violência. Com esta ideia, o De Maistre impugnava tudo. Todo o século dos filósofos era posto em causa. Gosto disto, porque, como dizem os ingleses, é food for thought. Dá que pensar. No Guerra e Paz, os limites do Iluminismo são expostos na figura do Pierre Bezukhov. O Tolstói nunca é prisioneiro dos filósofos, tal como o Stendhal antes dele. Nenhum dos dois se deixa aprisionar pela filosofia das Luzes. Tratam o ser humano como ele é.

Outra coisa curiosa no Guerra e Paz é a forma como antecipou, de certo modo, algumas ideias da Escola dos Annales. Para o Tolstói, nem o império francês nem a guerra contra a Rússia foram produto da vontade de um único homem, ou seja, do Napoleão. Segundo ele, a causa dos acontecimentos históricos depende da convergência de múltiplas arbitrariedades humanas, das diferentes vontades de todas pessoas — às vezes centenas de milhares de pessoas — que participaram neles. Para o Tolstói, as ações das massas são independentes da vontade única das chamadas grandes figuras.
Sim, por isso a sociologia deve tanto à admiração do Augusto Comte pelo Joseph de Maistre. Em termos absolutos, também não concordo que a História é apenas a história dos grandes homens. Ainda assim, e remetendo-me ao nosso país, acho que há três políticos fundamentais do nosso regime democrático, que são o Mário Soares, o Francisco Sá Carneiro e o Álvaro Cunhal. Os meus amigos dizem-me que é uma pena não ter conhecido o Adelino Amaro da Costa, que terá sido, segundo eles, um gigante comparável. Mas o Mário Soares é um caso à parte, porque foi um grande homem no sentido que o Carlyle dava aos grandes homens. O Soares, de certa maneira, desmentiu o Ortega y Gasset, porque o Soares derrotou a sua circunstância. A sua circunstância era a cavalgada imparável em direção a uma república popular portuguesa, à semelhança dos países de Leste.

Mas isso não foi obra apenas do Soares…
Vai dizer isso aos tipos que foram para a Fonte Luminosa armados, com medo das barricadas montadas pelo PCP. O Partido Comunista pensava que podia fazer à manifestação do PS e do Soares o mesmo que tinha feito à manifestação da maioria silenciosa do general Spínola. Em relação ao Sá Carneiro, não teve tempo para mostrar o que valia na governação. O seu fim trágico não lhe deu essa oportunidade.

E o Mota Pinto, de quem escrevi a biografia?
O Mota Pinto vinha daquilo que hoje se chamaria a ala esquerda do PSD, de que fazia parte o Sousa Franco, o Jorge Miranda e muitos outros. Era muito amigo de Mário Soares e sempre lhe ouvi palavras de muito apreço pessoal em relação em Mota Pinto. Eram pessoas parecidas.

Qual desses políticos é mais difícil de desenhar?
O Sá Carneiro e o Soares são fáceis de desenhar, porque têm feições mais pronunciadas. Se eu fizer um perfil do Sá Carneiro, percebes logo que é o Sá Carneiro. Não tenho grande inclinação para retratista ou caricaturista. O Sá Carneiro e o Soares mereciam estátuas decentes. A da Praça do Areeiro devia ser substituída. Parece o Luís XVI, com a cabeça a cair do cadafalso.

“O Direito é das disciplinas mais torturadas da minha cabeça”

A História é uma das tuas grandes paixões.
Sim. Aliás, isso permite-me voltar aos escritores portugueses. Lia-os muito em casa dos meus pais. Por exemplo, o António Lobo Antunes, de que gosto muito e continuo a ler pela vida fora. Com 13 ou 14 anos li Os Cus de Judas e o Auto dos Danados. Mas dele, o meu preferido é O Esplendor de Portugal. Apesar disso, um dos livros portugueses que mais me marcou foi o Memorial do Convento, do José Saramago. Li-o três vezes, de tal maneira me impressionou. Quando era criança, tive uma experiência muito pessoal. A minha mãe levou-me a fazer uma visita ao Convento de Mafra, capitaneada pelo Saramago, que era ainda um tipo relativamente obscuro.

É curioso referires esse livro, porque nos permite voltar à Escola dos Annales, que afirmaram-se pela crítica à História como uma história dos grandes indivíduos. A História do século XVIII e XIX tinha ficado prisioneira da descrição dos feitos e das biografias dos indivíduos ilustres, esquecendo-se do papel do sujeito comum e da importância das estruturas. O Memorial do Convento é altamente devedor desta perspetiva. Não é por acaso que a primeira tradução portuguesa do livro de Georges Duby, O Tempo das Catedrais, publicada em 1979 pela Estampa, foi feita pelo José Saramago. O Duby pertencia à segunda geração da Escola dos Annales. O Memorial do Convento foi publicado em 1982…
Sim, mas a única coisa que retive dessa visita foi a explicação do Saramago sobre a infestação de ratos no Convento de Mafra. Além de andar com o Saramago nos telhados do convento. O Memorial foi o livro dele de que mais gostei. De longe. Por causa da História. Gostei, sobretudo, daquela parte, na noite de não sei quando, em que o D. João V, com vista à produção de um herdeiro, se desloca ao quarto da rainha. Ou quando o rei, para afinar a pontaria, começa a disparar sobre os marinheiros, com o capitão indeciso, sem saber se havia de fazer descer os marinheiros ou deixá-los lá, para não desagradar ao senhor D. João V. Também gostei da História do Cerco de Lisboa.

Porque é que não estudaste História?
Foi o meu professor de História do liceu que me salvou de seguir História. Disse que ia cultivar o amor pela história ao longo de toda a vida, mas que tinha de ser prático e estudar Direito.

"Se a Rússia conseguir esmagar a Ucrânia, isso será um sinal de que, sobre o Direito Internacional defunto, regressaremos à política do poder, à chamada Power Politics. O poder dos fortes se imporem aos fracos. O direito do mais forte à vitória."

Alguma vez exerceste advocacia?
Só durante o estágio. O Direito é das disciplinas mais torturadas da minha cabeça.

Porquê?
Pergunta muitíssimo pertinente para a qual não tenho resposta.

Voltando à História.
Vivo dentro da cultura histórica e da cultura jurídica. Os dois períodos históricos que me interessam mais são a Revolução Francesa e a Antiguidade Clássica, talvez porque aquilo que as une é a Ciência Política e o Direito.

Quais é que são os livros sobre a Revolução Francesa de que mais gostas?
Para mim, o François Furet é o maior historiador da Revolução Francesa. Também gostei de um livro do Simon Schama, Cidadãos. Uma Crónica da Revolução Francesa, que está publicado em Portugal. E estou agora a lutar com a História da Revolução Francesa do Thomas Carlyle. Mas o mais palpitante são as memórias daqueles que viveram a grande revolução.

Como o Marquês de Sade…
Li no Schama que o Marquês de Sade começou a invectivar a multidão e contribuiu assim para a agitação. Por causa disso, o Sade, que podia passear livremente pela Bastilha e jantava com o Governador, que era um aristocrata como ele, voltou a ser confinado na sua cela, onde tinha centenas de livros. O Sade tinha uma espécie de funil, que era usado para urinar, e ele transformou-o em megafone, para continuar a exaltar as massas. O Schama é que conta esta história.

Porque é que gostas tanto da Revolução Francesa?
Por causa da rutura com o passado, do ideal da tábua rasa, de começar do zero, da ideia da revolução que devora os seus filhos. Depois, todas as figuras da Revolução Francesa estavam empapadas em cultura clássica, mais romana que grega.

E da Antiguidade Clássica?
A democracia ateniense durou 200 anos e foi um fracasso. Não acabou por causa da Guerra do Peloponeso. Acabou por causa da demagogia. A democracia ateniense foi tão perturbadora para alguns dos melhores espíritos do seu tempo, que o seu fracasso acabou praticamente por dar origem à filosofia política. Platão não perdoava à democracia ateniense a morte de Sócrates. E explicava que a democracia morre sempre às mãos da demagogia. Aristóteles dizia que a democracia conduz sempre à demagogia e a demagogia à anarquia, e a anarquia à tirania. A democracia ateniense teve má reputação durante dois mil anos, até à Revolução Francesa. Os Constituintes americanos tentaram construir um regime de liberdade, um regime constitucional à romana, e referiam-se sempre à democracia como um risco a evitar. Porque, para eles, a ditadura do tirano e a ditadura de uma maioria eram exatamente a mesma coisa. Eles queriam era proteger a liberdade que tinham acabado de conquistar contra o império inglês. Sabes o que tinha escrito na primeira página do meu Código Civil, quando estava na Faculdade? “Entre o forte e o fraco, a liberdade oprime e a lei liberta”. A liberdade assenta na lei e é limitada pela lei. Há certos direitos fundamentais que não podem ser postos em crise, nem por decisão de uma qualquer maioria democrática. A tragédia da democracia ateniense era essa, o facto de a única lei ser a da maioria.

"O ser humano não muda. A natureza humana é imutável. A única coisa que muda é a sociedade e a civilização, através de instituições cada vez mais perfeitas"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Qual é a tua opinião sobre a guerra na Ucrânia?
Vivemos num interregno histórico, ou numa improbabilidade histórica, que tentamos dilatar o mais possível, em que, com muitas imperfeições, os fortes têm o seu poder limitado pelo Direito Internacional. O que distingue a ordem internacional da ordem interna democrática, também ela fundada no Direito, é que na ordem interna existe coação, quem infringe a ordem interna é sancionado. A ordem externa é uma ordem muito mais imperfeita, é sobretudo programática ou aspiracional, porque os prevaricadores não estão sujeitos a nenhuma sanção. A invasão da Ucrânia significa que a Rússia pretende subverter uma ordem externa fundada no Direito, mas destituída de poder de coação. É o antigo sistema em que os fortes consideram poder impor-se aos fracos. É o regresso à barbárie anterior ao primado do Direito. Se a Rússia conseguir esmagar a Ucrânia, isso será um sinal de que, sobre o Direito Internacional defunto, regressaremos à política do poder, à chamada Power Politics. O poder dos fortes se imporem aos fracos. O direito do mais forte à vitória. O horror da II Grande Guerra criou condições para a emergência do Direito Internacional, sob a égide da ONU. Para uma pequena potência, como nós, o Direito Internacional são os nossos tanques, os nossos canhões e os nossos mísseis. É o que garante a nossa independência. Se o Direito Internacional colapsar, nós colapsaremos com ele.

Achas que é isso que acabará por acontecer?
O ser humano não muda. A natureza humana é imutável. A única coisa que muda é a sociedade e a civilização, através de instituições cada vez mais perfeitas. O ser humano em si não muda. As instituições contribuem para nos moldar, mas a nossa natureza é sempre a mesma. Todos os dias o João Pedro George decente e bom põe na ordem o João Pedro George egoísta e mau. As instituições formam-nos para sermos um bocadinho melhores do que na véspera. Esse é o ideal das Luzes. Uma das minhas mais salientes idiossincrasias enquanto homem de esquerda é reconhecer a dimensão quase incomparável de Rousseau e discordar radicalmente dele. Sou um pessimista antropológico. Acho que o ser humano não é bom nem mau. É o que é, e não muda. É isso que me aproxima da direita filosófica.

Concordas com a posição do PCP em relação à Ucrânia?
Claro que não. A posição do PCP é uma curiosidade anacrónica e obscena. Usa o velho discurso de sempre, tanto assim que mantém laços do tempo da Guerra Fria. O PCP tem no seu comportamento, na política nacional, uma postura de defesa das instituições e participa lealmente na vida política democrática. Além disso, num país empobrecido como o nosso, o PCP é um partido aglutinador de muito descontentamento legítimo, na ausência do qual esse descontentamento descambaria em proveito de partidos infrequentáveis. O declínio do PCP já esta a alimentar o Chega. Infelizmente, no plano programático, o PCP faz parte dos problemas do país e não faz parte das soluções. O PCP é um partido sectário e tem uma conceção maniqueísta da História. Considera que, com os seus 4%, é o único que está do lado certo da História. Toda a gente usa este chavão horroroso do lado certo da História. Mas a História tem algum sentido?

"As ideologias radicais têm um receituário para resolver os problemas, mas eu, infelizmente, não tenho nenhum. Só vejo as pequenas mudanças que podiam abrir caminho a um processo de desenvolvimento semelhante ao dos outros."

As minhas críticas à posição do PCP já me valeram a acusação de me ter tornado num tipo de direita. Fui inclusivamente acusado de ser um anticomunista primário.
Bem-vindo ao grupo. Quando eu e o meu irmão éramos pequenos, a minha mãe levava-nos à Feira do Livro e dava-nos um pequeno orçamento para gastarmos em livros. O meu irmão, que é inteligente e desenha tão bem ou melhor do que eu, comprava BD. Eu ia para a banca das edições Avante! e comprava os livros do Boris Ponomarev [político, historiador e membro do Secretariado do Partido Comunista da União Soviética] e do Álvaro Cunhal. Tinha aí uns 12 ou 13 anos. Li e sublinhei O Partido com Paredes de Vidro, do Cunhal. Nesses anos, estávamos ainda sob o Bloco Central, do Soares e do Mota Pinto, de que discordava. Porque achava que a política do PS era de compromisso com a direita. Eu estava intoxicado em ideologia, como todos os da nossa geração. Hoje, sou um defensor do Bloco Central de 1985. Reconheço que teve um papel fundamental. Foi o programa de ajustamento negociado com o FMI, pelo Bloco Central, que permitiu corrigir os desmandos da política económica da AD, uma política eleitoralista que pretendia apenas fazer com que o Soares Carneiro chegasse à Presidência da República. O Sá Carneiro é uma figura fascinante. Como político conseguiu fazer duas coisas fundamentais: a primeira, foi levar a direita ao poder, pela via democrática; a segunda, foi ter derrubado, com a eleição da AD, a quase hegemonia do PS na política portuguesa. Mas a política que seguiu depois, de um escudo forte acompanhado de eleitoralismo, para ver se era possível eleger o general Soares Carneiro, conduziram a uma série de desequilíbrios que acabariam por nos fazer cair na alçada do FMI. Portanto, a tese da direita, de que o PS é que nos atira sempre para os braços do FMI, é uma falsidade histórica.

E as consequências económicas negativas das políticas do PS, na segunda metade dos anos 1970, antes dos governos de iniciativa presidencial do general Ramalho Eanes?
O Soares, quando chegou a Portugal, vinha disposto a fazer uma experiência socialista, foi isso que ele tentou fazer em primeiro lugar. Mas depois, com todo o passivo daqueles dois primeiros anos revolucionários, que colocaram o país numa situação dificílima, causada também pela crise do petróleo, o Soares e o PS foram os primeiros a lidar com a realidade. No sul da Europa, o PS foi mesmo o primeiro partido socialista a lidar com a realidade de frente. A melhor definição do que significa governar é essa: ter de lidar com a realidade. O Soares teve de fazer a primeira poda das inutilidades operativas. E de governar nas circunstâncias do seu tempo. Não é possível construir um socialismo a partir do atraso económico, nem construir prosperidade por via da coletivização. O Soares nunca perdeu de vista a sua meta, que era um Portugal que também poderia viver um pouco como os parisienses, entre a esplanada e a livraria, entre a livraria e o museu, entre o museu e a esplanada. Percebeu que, para isso, para se aproximar do seu ideal, que era essa Paris, seria preciso uma economia de mercado próspera. Um país onde as pessoas tivessem dinheiro para comprar livros e vontade genuína de visitar um museu. O Soares nunca foi um liberal, era um socialista. Para o Soares, homens emancipados eram esses, os que tinham um mínimo de conforto económico e que descobriam o conforto proporcionado pela cultura. Na mundividência do Soares, como na minha, não cabem milionários com fortunas pessoais que excedem o PIB de países inteiros. Os liberais doutrinários vivem num mito, segundo o qual a riqueza de cada um exprime o seu mérito. Como é possível conceber que alguém valha milhões de vezes o valor do seu semelhante? Só me posso preocupar com a nossa economia de mercado, que é aquela sobre a qual posso ter alguma influência, e a realidade que eu vejo, em Portugal, é a de um capitalismo pobre, periférico e parasitário do Estado. O peso do Estado continua a ser esmagador no nosso país. As ideologias radicais têm um receituário para resolver os problemas, mas eu, infelizmente, não tenho nenhum. Só vejo as pequenas mudanças que podiam abrir caminho a um processo de desenvolvimento semelhante ao dos outros. Hoje produzimos pouco, redistribuímos pouco, e amanhã redistribuiremos ainda menos. Porque o facto fundamental do nosso atraso é a incapacidade de criar um ecossistema gerador de riqueza e de crescimento.

Porque é que tanta gente inteligente, nestas circunstâncias, continua a apoiar o PCP?
Tem que ver com o sistema de valores. Nos EUA, as pessoas mais credenciadas são as que fazem fortuna, na Europa são os intelectuais. E os intelectuais, protegidos das consequências das suas proclamações, pendem em todas as direções. Um dia, o Mário Soares perguntou ao arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer: “Como é que você consegue continuar a ser comunista, com 60 milhões de mortos na consciência.” E ele respondeu: “Calúnias! Dez milhões, no máximo!”. Nós, socialistas democráticos, nunca matámos ninguém, não é maravilhoso?

Qual é a tua opinião sobre o Putin?
Sobre o Putin penso o que toda a gente pensa. Não há nada que mereça ser repetido. O Putin é um reacionário. Eu não sou um reacionário, nunca fui. Tenho terror da revanche da direita contra o wokismo. Nessa altura, não farão diferença entre pessoas como eu e os acólitos do wokismo.

“Sou contra tudo o que é ‘woke’. O meu partido é o da liberdade”

És mesmo obcecado com o wokismo.
Tenho aversão ao wokismo e ao politicamente correto. Sou contra tudo o que é woke, para mim é uma seita milenarista. O meu partido é o da liberdade. Não quero viver num mundo onde um homem prefere não entrar num elevador se tiver de ficar sozinho com uma mulher, ou tem de ficar de porta aberta, no gabinete da universidade, quando está a ter uma reunião com uma colega ou uma aluna. Aqui há dias vi uma série, um western, com uma maravilhosa liberdade politicamente incorreta nos diálogos. Parecia que estava outra vez nos anos 1970, a ver o Sergio Leone ou o Sam Peckinpah. Ainda pensei: as coisas estão outra vez a dar a volta. Mas afinal essa série era de 2004. Hoje era impossível. Do mesmo modo, algumas das cenas mais hilariantes dos Monthy Python hoje não seriam possíveis. Aquela cena da corrida entre representantes da elite inglesa, todos apresentados como deficientes motores. O mesmo com as entrevistas históricas do Herman José…

Que foram censuradas pelo Conselho de Gerência da RTP, em 1988, durante a governação de Cavaco Silva. Sem quaisquer explicações, a meio da entrevista à Rainha Santa Isabel, a emissão foi cortada. Logo de seguida, apareceu o José Rodrigues dos Santos anunciando que o programa tinha sido cancelado. Nesse caso, não se tratou de wokismo. Pelo contrário: o Herman José foi acusado de gozar e ridicularizar referências históricas nacionais, como o D. Afonso Henriques, o Afonso de Albuquerque ou o D. Sebastião. Posteriormente, segundo as explicações da RTP, o programa tinha sido cancelado porque tinham recebido inúmeras queixas de espectadores.
Um dia passei em frente de um escaparate de uma livraria. Estava todo coberto com uma nova tradução do Mein Kampf, que tinha acabado de sair. Entrei e disse ao livreiro: “Você tem todo o direito de vender o livro, até me bateria para que o pudesse fazer. Mas a sua montra é demasiado ofensiva para demasiada gente”. Mas jamais me passaria pela cabeça sair dali para organizar um boicote à livraria. Que me interessa a mim que o Herman José seja censurado pela RTP e o Ricardo Araújo Pereira pela multidão? Censura é sempre censura. Nem o Herman José devia ter sido censurado pela RTP, nem o Ricardo Araújo Pereira tem de se submeter às taras da multidão ou das redes sociais.

Quando o filme “E Tudo o Vento Levou” foi temporariamente retirado da plataforma de streaming HBO Max, para que lhe fosse introduzida uma explicação que contextualizasse o filme, muitos ergueram de imediato o fantasma da Inquisição e do Index. O texto diz: “O tratamento deste filme através da lente da nostalgia tende a negar os horrores da escravatura, bem como o seu legado de desigualdade racial”. E acrescenta: “Ver ‘E Tudo o Vento Levou’ pode ser desconfortável, até doloroso, mas é importante que os filmes clássicos de Hollywood estejam disponíveis para nós no seu formato original. Não só porque refletem o contexto social em que foram feitos, como permitem aos espectadores meditar sobre os seus próprios valores e convicções, quando agora os veem”. Não achas isto razoável?
O papel da arte não é ser pedagógica, a arte só tem uma dívida para consigo própria. Em muitos casos, trata-se de ser cancelado e eu não quero que os meus concidadãos sejam cancelados. A cultura do cancelamento foi instaurada por essa dinâmica que visa, anacronicamente, julgar os nossos antepassados à luz dos nossos valores. Tem uma conceção melodramática da História, quando a história é fundamentalmente uma tragédia.

"As nossas peripécias pessoais, comparadas com o drama dos nossos tios que foram retornados, ou dos nossos avós que combateram na Flandres, são quase indignas de registo. O que me irrita é o cancelamento, são as reparações, é a existência de quotas. Sou contra isso tudo."

Precisamente. A visão da História de Portugal que nos foi legada pelo Estado Novo é uma visão dulcificada. Por exemplo, sobre a presença portuguesa em África, escondia-se o racismo e a violência sobre os colonizados.
Essa versão edulcorada e falsa deve ser desmontada e tem sido desmontada. A descrição da crueldade e da barbaridade do Império deve ser feita. Não vou impugnar essa leitura histórica, para já porque não tenho autoridade e também porque me inclino a concordar contigo. Mas o wokismo não tem que ver com isso. Tanto eu como tu não somos descendentes dos negreiros que construíram os palácios na Lapa. O bairro da Lapa está cheio de casas de negreiros e o que é que os meus avós têm que ver com isso? A minha família descende de gente que sobreviveu a esgaravatar uma terra pobre desde a Idade do Ferro. Uma das coisas que facilitou a integração desses pobres, no ambiente colonial, foi serem eles próprios oriundos de um ambiente tão misérrimo e primitivo como o dos povos colonizados. Em Portugal, somos todos filhos da miséria, podemos escavar que o resultado é sempre o mesmo. As nossas peripécias pessoais, comparadas com o drama dos nossos tios que foram retornados, ou dos nossos avós que combateram na Flandres, são quase indignas de registo. O que me irrita é o cancelamento, são as reparações, é a existência de quotas. Sou contra isso tudo.

E as reparações aos judeus depois do final da II Grande Guerra?
O que os judeus reclamam, e com razão, é o direito a uma verdade histórica não adulterada, assim como, por exemplo, os negros norte-americanos têm direito a que ninguém negue a existência histórica da escravatura. Sou defensor de uma república de iguais, defendo que todos os que estão numa situação de desvantagem devem ser apoiados pelo Estado, independentemente das desgraças que se abateram sobre os respetivos antepassados. Se ninguém contesta isto, afinal não sou um monstro. Também não me estou a defender de ninguém, ninguém me acusou de ser um monstro. Represento é uma maneira de ser de esquerda que não tem nada que ver com o wokismo. Somos uma periferia de um wokismo que tem o seu epicentro nos EUA. As coisas chegam cá tarde e exageradas, desmesuradas, caricaturais. É como dizia o Eça: quando em Paris se usam sapatos em bico, em Portugal aparecem uns sapatos bicudíssimos. O que eu contesto é a conceção identitária da sociedade e a constituição de grupos vitimizados. A sociedade deve exprimir-se como bem entender. A exigência de compensações por causa da escravatura é o wokismo internacional, é a pulverização identitária da sociedade. Eu levanto-me contra o wokismo em nome do século XVIII e das Luzes. Há 20 anos, ou mais, habituei-me, a propósito da interrupção voluntária da gravidez, a suportar, de algumas pessoas que não conhecia, esgares de verdadeiro ódio. Hoje sinto o mesmo vindo de gente claramente de esquerda. De gente que devia partilhar comigo a mesma mundivisão fundamental.

Qual é a tua posição relativamente à lei que regula a prática da eutanásia? Achas que devia ter sido referendada?
A minha posição de princípio é ser contra todos os referendos, mas a minha posição jurídica é a de que nada impede o referendo à eutanásia. É preciso perceber porque é que o instituto do referendo aparece na Constituição. A esquerda democrática de 1976 associava o referendo aos plebiscitos usados e abusados durante o anterior regime. Bem como ao plebiscito que converteu o presidente Napoleão em imperador Napoleão III. Pelas mesmas razões, uma certa direita plebiscitária sempre foi a favor do referendo. O Sá Carneiro queria referendar a Constituição de 1976. Ou seja, era o apelo direto ao povo para subverter as instituições da democracia representativa, a única que é verdadeiramente indissociável da democracia. Por volta dos anos 1980, apareceram na esquerda vários defensores da democracia participativa, que valorizavam muito o referendo, e foi nesse contexto histórico que o PS consentiu a entrada do referendo na Constituição, porque antes não estava. Quando se discutiu a interrupção voluntária da gravidez, em 1997, o primeiro-ministro António Guterres, e o líder da oposição, Marcelo Rebelo de Sousa, acordaram realizar um referendo sobre matéria que já tinha sido aprovada na Assembleia da República, colocando em confronto a democracia representativa e a democracia participativa, que é justamente o que não pode acontecer. O referendo é o instrumento querido de todos os populismos. Sou um tipo muito atreito a ter dúvidas. Em relação ao aborto não tive dúvidas. Sempre fui a favor da eutanásia, mas com dúvidas e interrogações. Tenho dúvidas que a eutanásia seja um direito fundamental.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

És um tipo zangado com uma parte da esquerda e às vezes és mais duro com as pessoas de esquerda do que com as de direita.
A explicação é simples. A esquerda é a minha casa. A esquerda está cheia de palavrosos estéreis, está cheia de demagogos e de narcisos. Passei anos a trabalhar em favor do elevador social e agora constato que o país depende não do elevador social, mas da catapulta social. O que é a catapulta social? Como o elevador está escangalhado, temos de exportar os nossos filhos para as zonas dinâmicas e criativas da Europa do Norte. Que lhes dão as perspetivas ou os horizontes que nós lhes negámos. Portanto, substituímos o elevador pela catapulta. O debate político está completamente formalizado. Para a maior parte das pessoas, ser de esquerda comporta defender a escola pública, a despesa pública, o reconhecimento de mais direitos, a outorga de mais subsídios e subvenções. Os meus filhos são meio suecos. Eles têm mais futuro no país da mãe do que no país do pai.

Isso deixa-te destroçado?
Isto é muito mais profundo do que isso. A Suécia é um país quase ininterruptamente, desde 1900, social-democrata. Os suecos têm um PIB que é entre o dobro e o triplo do nosso. Como podemos nós ser uma social-democracia sueca, sem gerarmos a riqueza que a economia privada sueca já criou e continua a criar?

Em relação à geringonça, contra a qual te insurgiste, acabaste por ter razão. Tivemos eleições antecipadas porque os partidos da geringonça não se conseguiram entender.
A geringonça foi uma solução encontrada para desalojar do poder o partido mais votado, que tinha sido o PSD. Estava contra isso. Achava que, segundo o código não escrito do nosso sistema democrático, o partido mais votado tinha direito a governar. Parecia-me que uma aliança entre o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda só podia ter uma função: desalojar do poder o partido mais votado. Porém, em termos programáticos, não tinha viabilidade, como se veio a demonstrar. Parecia-me inconcebível que o PS, que construiu o sistema democrático e que criou as condições para o seu funcionamento com o PSD, fosse perguntar ao PCP e ao BE se estavam disponíveis para viabilizar um governo do PS, que tinha perdido as eleições. O PS construiu este sistema demoliberal contra as conceções do PCP, que nunca votou, desde 1976, um orçamento de Estado do PS. Não existem quaisquer afinidades entre o programa do PS e o do PCP. Para a conceção de desenvolvimento do país, que nos aproximaria dos partidos mais avançados da Europa, o PCP e o BE fazem parte do problema, nunca da solução. Portanto, a geringonça foi uma convergência utilitária e instrumental. O PCP é um partido fundamentalmente estatista e o PS é um partido que tem a obrigação de saber que o crescimento económico depende da criação de um ecossistema que permita ao sector privado crescer. Não há compromisso possível. O Soares costumava dizer que antes de um entendimento qualquer entre o PS e o PCP, era preciso que o PCP fizesse a sua autocrítica, coisa que nunca fez.

Como é que tem sido a tua experiência como cronista do semanário Expresso?
Quando escrevo uma crónica, a minha principal preocupação é que tenha qualidades suficientes para sobreviver ao tempo. Quando digo tempo estou a pensar, evidentemente, numa perspetiva modesta. Quero que valha um bocadinho mais que a circunstância que a ditou. Se tudo correr bem, daqui a 50 anos ninguém terá interesse nas polémicas do wokismo. De qualquer maneira estamos todos votados ao esquecimento.

És um estilista, portanto?
Tento ter um estilo francamente anglo-saxónico. Um estilo onde não haja nada que não possa ser escrito com simplicidade. É uma espécie de disciplina.

Há quem diga que escrever de forma clara e simples é uma questão de boas maneiras, de paciência e de civilidade.
Sou sensível às boas maneiras, mas no meu caso é mais uma tentativa de ser fiel ao que gosto quando leio os outros. No que aos portugueses diz respeito, tenho uma grande admiração pelo Vasco Pulido Valente. Porque nunca sucumbiu à tentação infantil de embelezar os textos. Os textos não servem para serem adornados como árvores de Natal, nem para exibir gratuitamente a erudição do autor. Se obrigarem alguns a ir ao Google, ainda bem. Foi o que muitas vezes me aconteceu a mim como leitor. O Vasco Pulido Valente era o maior cronista português, de longe. Basta dizer que vou à Biblioteca Nacional para ler O País das Maravilhas, porque está esgotado, já não está no prelo. Até já fiz umas imprecações na televisão para ver se algum editor se interessava pela reedição. Acho que os livros dele deviam ser objeto de Obras Completas.

E brasileiros?
Dos brasileiros gosto do Nelson Rodrigues.

Disseste que tentas ter um estilo anglo-saxónico. Lês os jornais ingleses?
Não gosto do estilo sentencioso do The Guardian, embora tenda a concordar com muitos conteúdos. Gosto mais do estilo do Spectator, apesar de discordar dos conteúdos. É a melhor prosa. Até gosto do cronista social, que chama ao Trump “o Donald”. É um tipo que tem uns noventa anos, chama-se Taki. Não leio cronistas sociais em lado nenhum. Tem uma prosa de sonho, só os ingleses são capazes disto. E leio os obituários. Os únicos obituários que leio são os do Sebastião Bugalho e do António Araújo. E o José Cutileiro também lia. Agora encomendei um livro dele de Inglaterra, que é o Ricos e Pobres no Alentejo, porque cá não se arranja. Os alfarrabistas são muito caros.

"Não há nada como um tipo ter a experiência de ver os seus livros no chão de um alfarrabista, para perceber a efemeridade de tudo o que escreve."

Como está a ser a tua experiência na CNN Portugal?
Encaro a televisão com profissionalismo.

Gostas mais de escrever crónicas ou comentar na televisão?
Gosto de ambas as coisas, embora a palavra escrita tenha uma aspiração de sobreviver um bocadinho mais que a prestação televisiva, que é consumida pela voracidade do tempo que passa. Mas não há nada como um tipo ter a experiência de ver os seus livros no chão de um alfarrabista, para perceber a efemeridade de tudo o que escreve.

A introdução do teu livro foi escrita em Fontanelas (concelho de Sintra) onde tens casa. O Vergílio Ferreira também tinha casa em Fontanelas.
Um dia fui à procura da casa do Vergílio Ferreira. Ele escreveu O Existencialismo é um Humanismo e era conhecido como o Sartre de Fontanelas. Mas eu comprei casa em Fontanelas porque queria viver no campo. Passo mais tempo cá, mas a de Fontanelas é a minha verdadeira casa, porque é a casa onde tenho todos os meus livros e os meus filmes. As pessoas na cave têm uma adega, eu tenho uma coleção de filmes de todos os géneros. Em matéria de filmes posso dizer como o Churchill: o melhor de tudo chega-me perfeitamente. Entretanto, comecei a perceber que a humidade de Fontanelas dava cabo daquilo tudo. Mas em Fontanelas também tenho o meu jardim. O desenho do jardim, que aparece no livro, é o de Fontanelas, com uma palmeira que já morreu atacada pelo escaravelho africano. Já fiz um genocídio desses escaravelhos e mesmo assim venceram. E também há um desenho da Praia Grande.

Gostas de praia?
Não ligo muito à praia, raramente vou à praia. Gosto do jardim, do locus amoenus [lugar ameno, local idealizado de segurança ou conforto], como diziam os clássicos. Trabalho no jardim como um forçado. Realizo as tarefas milenares, a monda, a rega, a poda. Há outra frase latina de que gosto muito que diz: “Passeando no jardim oiço a voz de Deus”.

És crente?
Sou um agnóstico com tendências místicas.

Trabalhar no jardim e desenhar são, para ti, atividades terapêuticas?
Talvez. O desenho é terapêutico por causa do grau de concentração que exige, que obriga a uma espécie de desligamento em relação aos temas do dia a dia. Como se convocasse uma parte do cérebro que, quando entra em funcionamento, desliga a outra. Mas pensando nisso, o jardim tem de facto que ver, sobretudo, com o lado plástico da minha vida. O que é um jardim senão uma tela ou uma folha em branco? Um jardim é uma luta contra os condicionamentos da natureza, do clima e do solo. Construir um local ameno, um paraíso — em persa, “jardim” e “paraíso” são a mesma palavra —, supõe a aspiração de corrigir a natureza, impregnando-a de subjetividade, de esforço e de labor.

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