“Passos aparece de novo”, titulava ontem uma notícia do Observador. “Não há duas sem três”, começava por detalhar Miguel Santos Carrapatoso na abertura do texto, “Depois de ter apresentado o livro Identidade e Família e depois da entrevista a Maria João Avillez, no Observador, Pedro Passos Coelho fez uma nova aparição, desta vez no clube Rotário Parque das Nações”. Assim mesmo: “aparição”. Não se aponte o dedo ao autor pelo misticismo da terminologia – uma rápida vista de olhos pela imprensa mostra como esteve longe de ser caso único. A pedir responsabilidades que o façamos ao sujeito da história: o antigo primeiro-ministro que se tornou, por estilo ou substância, neste fenómeno. Uma presença que, de vez em quando, se encontra entre nós. Qualquer coisa entre a divindade e o OVNI. Um oráculo. Um espectro. Depois de anos de silêncio, entrou-se, ao que parece, numa época boa para os avistamentos de Passos. Para os encontros imediatos. Mas quais serão as suas intenções? Virá em paz ou planeia invadir? Não se sabe e o próprio não esclarece. Qualquer dia, arrisca-se a vir na secção de ciência.

É um estranho culto pelo oculto que tem a direita portuguesa. Não sei se já reparou. Os líderes da esquerda propõem-se sempre a tudo: todos querem ser Presidentes da República, Altos-Comissários, Secretários-Gerais da ONU, Presidentes do Parlamento Europeu ou mesmo do Conselho; os da direita nunca querem nada. Apostam no charme do desentendido: “eu ia só a passar”, “vim só fazer a rodagem do carro”, “nem que Jesus Cristo desça à Terra”. De Cavaco a Marcelo, de Passos a Marques Mendes, adoram um tabu. São a moça que se faz difícil, o gaiato que finge não estar assim tão interessado. Se a política fosse uma loja de roupa, diriam que “estão só a ver”.

Aparentemente, Pedro Passos Coelho decidiu ser esse novo pretendente desprendido. Um discurso numa campanha eleitoral aqui, uma conferência ali, uma entrevista acolá, uma apresentação de livro acoli. Sempre a deixar cair qualquer coisa para lá dos estritos limites do pretexto: uma observação sobre o que o partido devia fazer, um comentário sobre um tema na agenda, uma crítica a um político no activo, umas frases mais ou menos cifradas para a bolha mediática se entreter a descodificar. Não tem direito? Claro que tem direito – mas também tem deveres. Especiais. As suas palavras não têm o impacto das de um cidadão comum porque Passos Coelho não é um cidadão comum; é um ex-primeiro-ministro, um antigo presidente do PSD, um militante activo e destacado de um partido que acaba de regressar ao governo numa situação extremamente precária e depois de quase nove anos de travessia do deserto. Ou Passos Coelho percebe que está a causar dano a esse partido e a esse governo e é grave, ou não percebe e é capaz de ser mais grave ainda.

Passos foi um primeiro-ministro corajoso e o homem que livrou Portugal de três coisinhas muito simples: de José Sócrates, de Ricardo Salgado e da troika. O país nunca lhe agradeceu e, provavelmente, nunca agradecerá o suficiente. Mas faltou-lhe sempre o talento para as palavras ou, o que não é melhor, a compreensão da sua importância. Do “não sejam piegas” ao aconselhamento à emigração, passando pelos míticos “ir além da troika” ou “que se lixem as eleições”, entre 2011 e 2015, de cada vez que o primeiro-ministro abria a boca os seus maiores admiradores tremiam com medo de que provocasse um motim. Mas, em todos aqueles casos, era perfeitamente possível deslindar a intenção benigna de cada declaração porventura menos conseguida. O PM não se estava a lixar para a democracia; estava a dizer que tomava as decisões de que o país precisava, independentemente do preço que pudesse pagar nas urnas. Não estava a mandar os portugueses daqui para a fora; estava a ser sincero e realista, características raras na política portuguesa e global. Et cetera. Passos foi sempre mais ou menos brutal no que dizia, mas sempre pareceu movido por um hercúleo sentido de responsabilidade: “Eu não abandono o meu país”, disse, num dos seus momentos políticos e comunicacionais mais conseguidos, quando recusou ceder à “demissão irrevogável” do mesmo Paulo Portas com quem parece lembrar-se de vir agora, despropositada e desnecessariamente, acertar contas.

Mais: de que forma está agora, Abril de 2024, a pôr os interesses do país acima dos pessoais? Quer voltar a ser primeiro-ministro? Quer ser Presidente? Quer, simplesmente, dizer o que pensa e talvez nunca tivesse tido a liberdade para o fazer? Não sabemos. Mas ao menos descobrimos uma coisa: não foi a saída de Passos da liderança do PSD que criou um espaço para o nascimento de um partido liberal em Portugal. Acabaram-se os órfãos do passismo. “Aparição” após “aparição”, para condenar a eutanásia, recomendar coligações com o Chega ou apresentar livros de movimentos que defendem a criação do “estatuto da mulher dona de casa”, Passos não é, talvez nunca tenha sido, nem o papão liberal que a esquerda temeu nem o Dom Sebastião com que os liberais, um dia, sonharam.

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