Paula Rego era, sem dúvida, a pintora portuguesa contemporânea mais famosa, não apenas em Portugal, mas no mundo inteiro. Por isso, o Presidente da República, por ocasião da morte da artista, a 8-6-2022, decidiu honrá-la, a título póstumo, com o Grande Colar da Ordem de Camões, e o Governo decretou que o próximo dia 30 de Junho será, em sua memória, dia de luto nacional.

Não sendo apreciador da sua pintura, reconheço, contudo, mestria na sua execução: se o objectivo que se propunha era chocar, as suas obras foram muito conseguidas, porque os seus quadros são, por regra, incomodativos. De facto, as personagens de Paula Rego parecem saídas de um filme de terror: nas mulheres que pinta não há graça nem beleza, não há elegância nem feminilidade, mas um ar boçal, abrutalhado, que gera desconforto e, até, repulsa. Os esgares dessas personagens monstruosas são aflitivos, mas não são menos medonhas as suas poses, em que sobressai a crueza das posições, que produzem até uma espécie de vergonha alheia, como se olhar de soslaio para aquelas representações fosse já uma imperdoável falta de pudor.

Paula Rego, ou Maria Paula de Figueiroa Rego, era oriunda de uma família com tradição. Segundo o Anuário da Nobreza de Portugal, trata-se de uma “família descendente, por varonia, dos Regos de Barcelos, através de Manuel do Rego de Magalhães, Cavaleiro Fidalgo da Casa Real, Vereador da Câmara e Provedor da Misericórdia da então vila de Torres [Vedras], e de sua mulher D. Catarina de Figueiroa, filha herdeira de João de Figueiroa, Cavaleiro Fidalgo da Casa Real, Escrivão proprietário da Câmara da dita vila […], e de sua mulher D. Isabel de Aguiar Leitão. Daquele casal foi filho João de Figueiroa Rego […], o qual foi Fidalgo de Cota de Armas, Capitão de auxiliares e de ordenanças da comarca de Torres Vedras, Procurador às Cortes de Lisboa de 1642, etc.”, oitavo avô, pela varonia, da pintora.

A Wikipédia diz que Paula Rego nasceu “no seio de uma família da alta burguesia, de tradição liberal e republicana, com ligações à cultura inglesa e francesa”. Seu pai, José Fernandes de Figueiroa Rego, era um engenheiro electrotécnico, que lhe proporcionou um ambiente familiar certamente mais culto e cosmopolita do que o da maioria das famílias portuguesas. Também sua mãe tinha mundo porque, recém-nascida a pintora, os seus pais deixaram-na entregue aos cuidados dos avós paternos, para regressarem a Inglaterra, “a fim de terminarem os seus estudos académicos”.

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Não obstante o nível social e cultural da família de Paula Rego, a sua pintura reflecte uma atitude atormentada e ressabiada em relação à cultura portuguesa, também no que se refere aos valores religiosos. As telas que pintou para a capela do palácio de Belém, a pedido de Jorge Sampaio, são tão inconvenientes que roçam a blasfémia.

Essas pinturas, colocadas no interior de uma capela, mesmo que sem culto, não só ferem a sensibilidade dos católicos, como não estão acessíveis ao público. Talvez o actual inquilino do palácio de Belém pudesse providenciar a sua transferência para um espaço cultural de livre acesso, para benefício de quem aprecia a sua obra plástica, e em atenção ao desconforto que a sua presença, num espaço religioso, causa aos crentes.

Quando há tantos exemplos magníficos da beleza feminina, bem como do encanto da maternidade, nomeadamente na arte cristã – são inumeráveis as belíssimas imagens de Maria com Jesus ao colo! – as figuras grotescas de Paula Rego dão que pensar. Por que razão são tão sórdidas as mulheres que retrata?! Por que é tudo penoso, senão mesmo doloroso, nos seus quadros?! Por que não há um vislumbre de graça, ou de alegria, nas suas obras?! Por que motivo a sua pintura é tão desesperada?! Por que falta, na sua obra, uma mensagem de esperança e de vida?!

Oscar Wilde respondeu a estas perguntas em O retrato de Dorian Gray. O retratado protagonista do romance, não obstante a sua modesta origem, recebe uma avultada herança. Para imortalizar a sua juventude e beleza, Hallward decide pintá-lo e o retrato resulta ser uma verdadeira obra-prima. Dorian Gray, ao abandonar a sua amante, não só provoca o seu suicídio como, num acesso de raiva, mata Hallward. Depois, ao contemplar o seu retrato, desfigurado pelos crimes por ele cometidos, descobre que se convertera num monstro e, quando procura assassinar a sua imagem, é a si próprio que se mata.

Neste seu magistral romance, Oscar Wilde exemplifica como o verdadeiro retrato de alguém é, sobretudo, a sua consciência. Quem a outros retrata, também de si mesmo se confessa: o pintor, quando executa a sua obra, nela se expõe, retratando, consciente ou inconscientemente, o seu estado de alma.

Não é preciso ser discípulo de Freud para interpretar a pintura de Paula Rego neste sentido: através da sua arte, a pintora, inadvertidamente, exorciza os seus próprios fantasmas e manifesta os seus traumas e frustrações. As características das suas personagens são análogas ao modo como o retrato de Dorian Gray também espelhava a sua desesperada consciência.

Não é estranha, portanto, à pintura de Paula Rego, a sua dramática experiência de vida, que a própria confessou: “Fiz vários abortos” (Jornal Económico, 9-6-2022). Não só, por várias vezes, abortou, como se empenhou politicamente nesta tristíssima causa. Com efeito, em resposta ao referendo que, em 1997, em Portugal inviabilizou a legalização da eufemisticamente apelidada ‘interrupção voluntária da gravidez’, realizou a obra Aborto (1997-99), como manifesto artístico de intervenção política, em defesa do que o Concílio Vaticano II considerou ser um crime abominável (Gaudium et Spes, 51 e 27) e que, anos mais tarde, foi liberalizado no nosso país.

A pintura de Paula Rego e o retrato de Dorian Gray são, afinal, duas expressões dramáticas do que São João Paulo II chamou, em contraposição ao Evangelho da vida, a cultura da morte. Por mais que a retórica política tente justificar o aborto, ou a eutanásia, a consciência nunca poderá legitimar tais actos. Por isso, é em vão que Dorian Gray arremete contra a sua imagem desfigurada, como não é possível encontrar beleza, nem graça, nas atormentadas personagens femininas de Paula Rego. Paz à sua alma.