É com relutância que volto ao tema da pedofilia na Igreja. Sempre que são publicados novos dados sobre este escândalo, sinto uma imensa dor e vergonha e, como foram já tantas as vezes que publicamente o referi, julguei que já não tinha por que o dizer de novo. Não o faria, de facto, se a tal não fosse obrigado pela recente publicação do relatório Sauvé, que estima que, desde 1950, em França, cerca de 216 mil crianças foram abusadas por membros da Igreja católica.
Inúmeras vezes escrevi o que agora, com a mesma convicção, reafirmo: é absolutamente necessário que se conheça toda a verdade e que a Igreja seja exemplar no exercício da justiça e da caridade para com as crianças, que são as principais vítimas deste terrível flagelo e com cujo sofrimento me solidarizo totalmente. Não posso deixar de experimentar uma profunda compaixão pelas vítimas destes crimes, sentindo como própria a sua desilusão e horror por terem sido abusadas por aqueles que deviam ter sido, para elas, os ministros do amor misericordioso de Deus. Compreendo que algumas, depois de tão traumática experiência, se tenham afastado da Igreja, mas gostaria de lhes dizer que as pessoas que delas abusaram não são mensageiras de Deus, mas de Satanás, e que a verdadeira Igreja está de braços abertos para as acolher e amar.
Também sempre disse que os abusadores e encobridores, sejam clérigos ou leigos, bem como os que foram cúmplices destes crimes, por conivência ou omissão, devem sofrer todas as consequências legais e morais desses seus actos. No âmbito eclesial, defendo a demissão do estado clerical de quantos cometeram um tão abjecto crime, de todo incompatível com o ministério sacerdotal.
É sabido que, graças a Deus, mas também à imprensa que despoletou este escândalo, a Igreja, ao nível da Santa Sé e das dioceses, já tomou todas as medidas necessárias para a erradicação da pedofilia, com notáveis resultados práticos: nos Estados Unidos, por exemplo, praticamente desapareceram os casos de pedofilia por clérigos católicos. Ou seja, a legislação agora vigente sobre esta matéria permite afirmar que, na actualidade, a Igreja católica é uma instituição mundial em que, de iure e de facto, há tolerância zero para a pedofilia. As dioceses e as principais instituições católicas contam já, finalmente, com todos os instrumentos necessários para a prevenção, denúncia e erradicação de faltas desta natureza.
Como é óbvio, estes meios não permitem assegurar a não existência de nenhum caso de abuso de menores, até porque a maioria destas situações ocorrem no seio das famílias. Não obstante, é possível afirmar que a entidade eclesial está em condições de garantir que a pedofilia não é tolerada, nem praticada, em nenhuma das suas instituições, nem por nenhum dos seus ministros em exercício de funções pastorais.
Se é verdade que foi conveniente este escândalo, porque necessário para pôr termo a uma atitude de generalizada impunidade, é preciso não ter a ingenuidade de pensar que qualquer suspeita de um crime, se praticado por um clérigo ou numa instituição católica, não carece de prova. Quando se trata de delitos sexuais por parte de sacerdotes católicos, há quem converta a presunção de inocência na de culpa. É precisa alguma prudência, para não embarcar de ânimo leve em qualquer rumor sobre esta matéria, até porque é conhecida a abundância de fake news nas redes sociais e não só, e a animosidade anticatólica de certos poderes e meios de comunicação social.
É de todos bem conhecido o caso do Cardeal Pell, que injustamente esteve quase um ano detido por um inverosímil crime de abuso de menores, que depois se provou nunca ter existido e que foi utilizado para o afastar do importante cargo que ocupava na Santa Sé. Também entre nós, há já algum tempo, um sacerdote da diocese de Setúbal foi acusado de ter abusado de um menor. De imediato, alguma imprensa noticiou, com indisfarçada satisfação e obsceno sensacionalismo, o que parecia ser um caso de pedofilia. A Polícia Judiciária fez-se cargo da ocorrência e procedeu às diligências necessárias que, a breve trecho, concluíram a absoluta falsidade da denúncia pois, no dia em que a dita mãe alegara que o seu filho tinha sido molestado pelo referido sacerdote, este nem sequer tinha estado no local. A queixa foi, portanto, arquivada, mas alguma imprensa, que foi célere em publicitar a incrível calúnia, com danos irreversíveis para o bom nome do inocente pároco e da sua paróquia, optou por não repor, com a mesma diligência e destaque, a verdade dos factos.
Duas conclusões se impõem sobre esta matéria. A primeira é a de que é preciso continuar a investigar, a sério, este drama, para se conhecer a sua verdadeira dimensão. Seguindo o exemplo do Papa Francisco e tendo em conta o trabalho desenvolvido pelas comissões diocesanas, seria muito conveniente que a Conferência Episcopal Portuguesa coordenasse uma acção de esclarecimento e prevenção a nível nacional, por forma a poder apresentar, em breve, um estudo rigoroso sobre a pedofilia na Igreja em Portugal. Depois da chuva de abusos nos Estados Unidos da América – recorde-se que, por este motivo, um cardeal foi reduzido ao estado laical! – na Irlanda, na Alemanha, no Chile – onde todos os bispos, sem excepção, se demitiram – e, agora, em França, seria de uma incrível presunção supor que a Igreja portuguesa é a única que é imaculada.
Depois da denúncia, pela imprensa, de tantos casos de pedofilia na Igreja, sobretudo no estrangeiro, a imagem da instituição eclesial e dos seus ministros está gravemente prejudicada. Impõe-se restabelecer a confiança na Igreja católica, nos seus bispos e padres, nas suas dioceses, nos seus seminários e escolas, nos centros paroquiais, na catequese, no escutismo, nas ordens religiosas, nos movimentos, etc. Os portugueses têm direito a um esclarecimento cabal e fidedigno sobre a pedofilia na Igreja em Portugal, que ponha termo à caça às bruxas e ao clima de suspeição geral. Quem não deve, não teme.
Em segundo lugar, esta questão é suficientemente grave para que seja tratada por amadores, ou repórteres disfarçados de detectives. Não faz sentido que a comunicação social, que não dispõe dos meios de investigação policial e judicial necessários para a averiguação da verdade, se constitua como juíza de crimes em que, como se viu num caso tristemente famoso no nosso país, também incorreu um conhecido profissional da comunicação social. Claro que aos media cabe a importante missão de alertar para estas situações, mas não instruir os respectivos processos, nem julgar ninguém.
Como já foi apontado por vários comentadores, os dados agora publicados em relação a abusos de menores, em França, não são o resultado de uma investigação séria e rigorosa, mas o fruto de uma avaliação pouco criteriosa. O autor principal do relatório, Jean-Marc Sauvé, reconheceu que a margem de erro é de 50 mil abusos (!!), a mais ou a menos, o que obriga a concluir que este inquérito, embora apresentado como se fosse uma constatação factual, não passa de uma simples estimativa. Ora, nestas matérias, não se pode funcionar na base de probabilidades, mensagens anónimas, inquéritos à opinião pública, ou sondagens.
Com efeito, 243 entrevistas, mais 2700 cartas, mais 28 mil chamadas anónimas, por sinal de duvidosa credibilidade, somam, apenas, 30 943 casos: de onde procedem os restantes 185 mil casos que faltam, para o total de 216 mil abusos estimados?! Se se tiver em conta que, em França, existem 5,5 milhões de vítimas de abusos sexuais, 4% destes crimes seriam imputáveis a membros da Igreja, tendo uma origem não confessional os restantes 96%. Esta conclusão obriga a constatar que, infelizmente, a pedofilia na Igreja, embora gravíssima, é apenas a ponta de um imenso iceberg.
Ante o pecado, só há duas respostas possíveis: a farisaica e a cristã. A primeira justifica o mal, tentando desculpabilizar-se com os pecados alheios, ou com comparações que em nada atenuam a própria culpa. Sim, é verdade que também nas instituições do Estado se verificaram casos de pedofilia. Com certeza que há religiões em que é ainda maior a incidência de abusos de menores, por parte dos seus ministros. Tudo isto é verdade, mas não pode servir de consolo, nem de desculpa, para a indesmentível gravidade dos casos verificados, em tantos países do mundo, por tantos membros do clero católico.
A resposta cristã ao escândalo eclesial da pedofilia passa pelo reconhecimento da verdade e pela respectiva confissão pública, com corajosa e humilde sinceridade. Espera-se que este seja o caminho da Igreja portuguesa, na medida em que esta via sacra, embora dolorosa, é a única que conduz à redenção. Não em vão o Mestre disse que só a verdade nos tornará livres (Jo 8, 32).