Regressado de férias, o Cónego Jeremias pareceu-me muito abatido.

– Então, Senhor Cónego, porque está tão preocupado?

Não é por a Igreja ser perseguida, porque já o é há dois mil anos. Santa Teresa de Ávila dizia: nada te perturbe, nada te espante. Mas indigna-me esta campanha nos meios de comunicação social.

– Felizmente, para apurar toda a verdade, a Conferência Episcopal criou a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica.

Sim, claro, e fez muito bem. Mas, por que razão, os que vociferam contra a pedofilia na Igreja, não investigam também outras instituições?! Não querem acabar com o abuso de menores?!

– Devem pensar que é na Igreja que há mais pedofilia …

Então estão muito enganados porque, como o Papa Francisco disse, “segundo dados estatísticos idóneos, cerca de 50% dos casos de abusos ocorrem no seio das famílias ou no âmbito das relações de vizinhança. Apenas – e este ‘apenas’ reflecte uma constatação estatística, não permitindo tirar ilações no plano moral – 3 % dos casos ocorrem no seio da Igreja Católica”.

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– Mas o Senhor Cónego acha que a pedofilia é uma questão de números?!

Claro que não! Como também escreveu João Gonçalves Ferreira, a quem já citei acima, “o Papa considerou – e bem! – que qualquer caso de abuso por detentor/a de função religiosa constitui uma monstruosidade que exige tolerância zero. (…) Como diz o Papa, mesmo que houvesse um só caso na Igreja, seria vergonhoso.”

– E que me diz sobre os outros 97% de casos de pedofilia?

Pois é, esses, pelos vistos, não interessam! Andam por aí à caça de clérigos pedófilos, responsáveis por 3% dos crimes, mas esquecem 97% dos restantes abusos de menores! Pelos vistos, as crianças são apenas um pretexto…

– Sugere então que se investiguem todos os casos de abusos de menores?

Evidentemente, porque é da mais elementar justiça: só assim se conseguirá acabar com a pedofilia! Tão hipócritas são os clérigos que não reconhecem a pedofilia na Igreja, como os que só falam da pedofilia na Igreja, omitindo os outros casos.

– Mas o Senhor Cónego sabe de mais casos de pedofilia?

Todos sabem, mas muitos fingem não saber. Veja esta notícia recente: “o desporto português tem casos de violência física, psicológica, social e/ou sexual contra atletas. Está tudo muito silenciado e oculto. Poucos denunciam. O assunto ainda é tabu, mas existem” (Diário de Notícias, 24-2-2022). Porque é que a imprensa não investiga estes casos?! Porque os não denuncia?!

Em Inglaterra, a polícia investigou 55 clubes de futebol, por alegados abusos de menores (DN, 27-11-2016). Um ano antes, tinha identificado 83 clubes desportivos envolvidos em casos de pedofilia. A federação e os clubes ingleses foram acusados de terem abafado, durante décadas, cerca de 350 casos, segundo o relatório da polícia (Sapo Desporto, 9-12-2015). No entanto, em Portugal, a imprensa não diz que os treinadores são potenciais pedófilos, como insinua em relação aos padres, nem que os seus dirigentes os encobriram, como acusa os bispos da Igreja. Até parece que a comunicação social desvaloriza os pedófilos que são professores ou treinadores, para que se pense que só os padres católicos o são.

– Mas a Igreja, por ser uma instituição religiosa, tem mais responsabilidade …

Decerto e, por isso, a condição clerical, como a de familiar, professor ou treinador, deve ser considerada como agravante.

– Tem dados sobre a situação nas nossas escolas?

Não tenho uma lista exaustiva – o ofício dos padres é perdoar, não investigar, nem acusar ou difamar – mas sei de muitos casos recentes. Entre 2010 e 2015, 12 docentes foram expulsos do ensino por abuso sexual de menores e, em 2016, estavam a ser investigados mais 5 professores (Expresso, 17-1-2016). Há onze anos, um professor foi acusado de abusos sexuais de 5 menores, de 9 e 10 anos (DN, 27-10-2011). Outro, de Felgueiras, foi condenado por abuso sexual de duas crianças, suas alunas (SIC Notícias, 4-12-2017). Em Setúbal, o Ministério Público acusou um professor primário de ter abusado de 26 menores (Observador, 8-10-2019). Um docente de Braga foi condenado a uma pena suspensa pelo crime de abuso sexual de uma rapariga de 14 anos (Lusa, 20-11-2019). E, em Penafiel, foi condenado um pedófilo, por actos cometidos contra duas meninas, de 9 e 12 anos (Correio da Manhã, 19-11-2021). Já em 2022, um professor foi detido por actos sexuais, com menores, na sala de aula (Jornal de Notícias, 11-3-2022).

No ensino superior, também há casos de abusos de alunos eventualmente já maiores. Um professor da Faculdade de Letras foi acusado de ter abusado de uma estudante, que engravidou e perdeu o bebé (Observador, 29-4-2022). Por último, 10% dos docentes da Faculdade de Direito de Lisboa foram denunciados por assédio e discriminação, tendo sido validadas 50 queixas, respeitantes a 31 docentes (DN, 4-4-2022).

Talvez o Estado e a comunicação social devessem estar mais preocupados com o abuso de menores nas escolas e clubes desportivos do que na Igreja, que já faz tudo o que pode para erradicar a pedofilia do seu seio.

– Mas esta situação é exclusiva do ensino em Portugal?

De modo nenhum: entre 2001 e 2005, mais de 2.500 professores norte-americanos foram condenados pelo crime de assédio sexual (Expresso, 23-10-2007).

– Mas, por que razão os responsáveis políticos não actuam?!

Boa pergunta! Respondo-lhe com uma notícia recente: “Funcionário de colégio católico está preso por abuso de uma dezena de menores. Antes, uma escola pública ocultou os seus crimes” (Observador, 26-9-2022). Repare num pormenor significativo: quem só ler a primeira parte do título, retira a conclusão de que é mais um caso de pedofilia na Igreja, quando é, precisamente, o contrário! Com efeito, o funcionário em questão trabalhou na Escola Básica nº 1, de Birre, de que foi dispensado, por abuso de menores, sem que tenha sido apresentada queixa, embora a direcção da escola e a Junta de Freguesia estivessem a par da situação. Foi depois trabalhar para o Colégio Marista de Carcavelos, onde reincidiu nessa prática, tendo sido, de imediato, suspenso e denunciado às autoridades. Está a cumprir a pena de seis anos de prisão, a que foi condenado. No acórdão, os magistrados censuraram a negligência dos responsáveis pela escola pública, porque “não prestaram qualquer apoio às crianças”, bem como da Junta, que se limitou a oferecer “um serviço psicoterapêutico gratuito”. Se tivesse sido ao contrário, teriam caído o Carmo e a Trindade, com os media a acusar a Igreja de, mais uma vez, encobrir crimes de pedofilia; mas, como foi o Estado, o caso foi, salvo honrosas excepções (Sábado, 27-9-22; CM, 28-9-22), praticamente silenciado. Ou seja, a pedofilia só interessa quando serve para malhar na Igreja!

– Os bispos devem ser responsabilizados quando não denunciam actos de pedofilia praticados pelo seu clero?

Claro, se tiverem sido coniventes, mas não só eles! Há uma suspeita de um caso de abuso de menores na Igreja e a imprensa atira-se não apenas ao suposto pedófilo, mas também ao seu bispo. Foi assim com o Patriarca de Lisboa e, agora, com o Presidente da Conferência Episcopal, quando ambos agiram de forma irrepreensível. Mas, quanto aos abusos nas escolas, ou no desporto, ninguém responsabiliza os respectivos dirigentes, nem o ministério da tutela. Mais uma vez, dois pesos e duas medidas!

– Não lhe parece que este escândalo é particularmente vergonhoso para a Igreja?

Sem dúvida e, nesse sentido, foi benéfica a denúncia, pela comunicação social, destes casos, para que se pusesse termo a este drama. Mas os jornalistas deveriam ter a coragem e isenção de investigar e denunciar os restantes 97% de casos de pedofilia.

Quanto aos católicos, volto a citar João Gonçalves Ferreira: “Há dois mil anos que a Igreja enfrenta ciclicamente tormentas e tempestades. Sendo simultaneamente divina e humana, comete inevitavelmente erros por motivo da fragilidade humana daqueles que a servem. Nesta ocasião, recordando as palavras do Santo Padre, meu pastor, que me convida a não desistir e a não perder a esperança, vem-me à memória as palavras de Jacques Maritain ao escrever: ‘Os católicos não são o Catolicismo. As faltas, as lerdezas, as carências e as sonolências do católico não comprometem o Catolicismo… A melhor apologética [defesa] não consiste em justificar os católicos quando erram, mas, ao contrário, em assinalar esses erros e dizer que não afectam a substância do Catolicismo e só contribuem para melhor trazer à tona a força de uma religião sempre viva apesar deles… Não nos considereis a nós pecadores. Vede, antes, como a Igreja sana as nossas chagas e nos leva trôpegos para a vida eterna… A grande glória da Igreja é ser santa com membros pecadores’ (Jacques Maritain, Religion et culture, Paris 1930, p. 60). Que assim seja”.