Já muitas vezes aqui escrevi sobre a pedofilia na Igreja, sempre na expectativa de não voltar a este tema, que é para mim doloroso. Se, uma e outra vez, a ele tenho regressado, tem sido porque novos factos a tanto me têm obrigado, bem como o mandato de São Pedro: “estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança” (1Pd 3, 15).

Em “Eu vos peço em nome de Deus”, uma longa entrevista ao Santo Padre pelo jornalista argentino Hernán Reyes Alcaide, o Papa Francisco diz que a Igreja não se pode desculpar pelo facto dos abusos de menores estarem “muito presentes em todas as culturas e sociedades”, pois “milhares de vidas” foram destruídas, pelos que as deviam ter protegido e cuidado. Por isso, “tudo o que se fizer, para reparar esse dano, será sempre insuficiente”. Chega a afirmar que o seu primeiro ‘mandamento’ para a Igreja é ‘extirpar’ todos os abusos, porque expressam “uma verdadeira cultura de morte”. “Um só e único caso já é em si mesmo uma realidade monstruosa”, “um crime atroz”, “uma ferida feita a Deus” (La Razón, 18-10-2022).

Que a Igreja assuma toda a sua culpa, que não é pouca, sem subterfúgios nem desculpas de mau pagador, não quer dizer que os católicos devam ter, em relação a esta matéria, uma atitude ingénua, ou acrítica. É verdade que os filhos das trevas são mais astutos do que os filhos da luz (Lc 16, 8), mas não se confunda humildade com estupidez: os cristãos devem reconhecer as suas culpas, mas também os outros culpados têm que assumir as suas responsabilidades.

O Presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas Carvalho, que foi o superior geral, ou seja, mundial, da sua congregação religiosa, referiu a existência de falsas denúncias de abusos de menores, por pessoas que tinham sido pagas para esse efeito (Sol, 15-10-2022). O Cardeal Pell foi condenado, em primeira e segunda instância, e cumpriu um ano de prisão efectiva; só depois veio a ser provada, pelo Supremo Tribunal da Austrália, a sua inocência. Também neste caso, a falsa vítima tinha sido subornada para incriminar o que então era o número três da hierarquia da Santa Sé.

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Para que todos os factos sejam apurados e evitar-se que algum criminoso fique impune, ou que algum inocente seja injustamente condenado, a Conferência Episcopal Portuguesa houve por bem criar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica portuguesa (CIEAMI), que encaminha para o Ministério Público todas as suspeitas de abusos de menores.

Nas instituições da Igreja, mas não nas do Estado, já está em vigor a tolerância zero para a pedofilia. Recorde-se o caso do professor despedido de uma escola pública, por ter abusado de menores, sem ter sido denunciado às autoridades, por conivência dessa escola pública e da respectiva autarquia. Admitido, depois, num colégio católico, que desconhecia os seus antecedentes, reincidiu no crime. Foi, de imediato, expulso e denunciado às autoridades e cumpre agora pena de prisão efectiva. Portanto, as instituições católicas são, de facto, mais seguras do que as estatais, que encobriram um pedófilo que, só graças à denúncia de uma instituição católica, foi expulso, julgado e punido (Observador, 26-9-22).

O Papa Francisco teve a franqueza e a honradez de não escamotear a responsabilidade da Igreja em relação aos casos de pedofilia, mas também disse que, “segundo dados estatísticos idóneos, cerca de 50% dos casos de abusos ocorrem no seio das famílias ou no âmbito das relações de vizinhança. Apenas – e este ‘apenas’ reflecte uma constatação estatística, não permitindo tirar ilações no plano moral – 3 % dos casos ocorrem no seio da Igreja Católica”, como aqui já escrevi (E os outros 97% de casos de pedofilia?, Observador, 8-10-2022). A Presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens foi ainda mais longe, ao afirmar que a maioria dos abusos sexuais, em crianças, acontece dentro de casa e o agressor é alguém do seio familiar (DN/Lusa, 18-11-21). A questão não é, obviamente, numérica, nem de percentagens, mas os números valem o que valem: faz sentido que a comunicação social só se interesse por 3% destes casos?! Pode-se crer que, quem despreza 97% dos abusos de menores, esteja interessado no bem das crianças?!

A propósito de números, o Presidente da República foi infeliz ao dizer que não considerava “particularmente elevado” o total de 424 denúncias já recebidas e validadas pela CIEAMI (Diário de Notícias, 11-10-22). Mas a Comissão também não foi feliz nesta fuga de informação, porque pede-se-lhe que investigue o que tem que investigar e, depois, apresente à Conferência Episcopal um relatório final, não que dê palpites avulsos, que perturbam a opinião pública e geram confusão. O Chefe de Estado não tem por que se referir aos resultados provisórios de uma Comissão criada pela Igreja, à qual deverá transmitir as suas conclusões, nem pode achar que 424 possíveis abusos não são demais quando, para o Papa Francisco, um só caso já é monstruoso. O primeiro-ministro apressou-se a explicar que não era isso que o Presidente queria dizer … mas disse.

Contudo, dois dias depois, “numa resposta enviada à agência Lusa, o Ministério da Justiça refere que constam do registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores, criado em Março de 2015, 6.421 agressores” (Rádio Renascença, 13-10-22). Ou seja, afinal o Presidente da República tinha razão: o número de casos apurados pela CIEAMI é muito inferior ao total registado pelo Ministério de Justiça.

Note-se, no entanto, que os 6.421 abusadores não podem ser comparados com as 424 denúncias à Comissão, porque estas ainda são meras suspeitas, enquanto os 6.421 agressores já foram, todos, condenados por decisão judicial transitada em julgado. Por outro lado, 424 queixas talvez correspondam a menos agressores, porque várias denúncias podem ser do mesmo abusador, e, pela mesma razão, 6.421 criminosos significam, de certeza, um muito maior número de delitos desta natureza, porque estes delinquentes tendem a ser reincidentes. Por último, a cifra divulgada pelo Ministério da Justiça diz respeito apenas aos últimos sete anos, porque este registo foi criado em 2015, enquanto a Comissão Independente está a investigar todos os casos de que há conhecimento, mesmo os que aconteceram no século passado.

Segundo o coordenador da CIEAMI, Pedro Strecht, o “número dos abusadores será na ordem das centenas” (Jornal de Notícias, 11-10-22). O mesmo responsável disse que há “17 casos de padres em funções em várias dioceses do país enviados para o ministério público”, a que há que juntar mais 30, que estão ainda em estudo. Mesmo que todos estes casos sejam validados, num universo de aproximadamente 3.800 sacerdotes portugueses, haveria uma percentagem de 1,2% de padres pedófilos, ou seja, 0,7% do total de abusadores de menores. Lamentável, certamente.

Queremos acabar, de vez, com a pedofilia em Portugal? Publiquem-se, então, os nomes e profissões dos 6.421 condenados por crimes sexuais contra menores, para que – finalmente! – se saiba quem é quem, e se ponha um ponto final a este clima de generalizada suspeição, nomeadamente em relação à Igreja católica e aos seus ministros.

Uma tal revelação seria injusta? De modo nenhum, porque se trata de um crime público e essa divulgação é exigida pelo bem comum, como medida preventiva. Por outro lado, os condenados por este crime horroroso não têm direito a preservar um bom nome, ou fama, que não têm! Se, até à data, ninguém impediu a divulgação dos nomes de padres que nem sequer foram julgados, nem condenados, com mais razão se pode revelar a identidade de criminosos já condenados. A comunicação social, se não quiser ser cúmplice, não pode encobrir a identidade dos pedófilos condenados, até porque não procede desse modo em relação aos clérigos suspeitos e, por enquanto, inocentes.

De facto, é patente o enviesamento dos media na abordagem da pedofilia: por que razão se sabe o nome dos padres e não o dos professores, treinadores, etc., quando os primeiros são apenas suspeitos e os últimos já foram condenados, por decisão transitada em julgado?! Por que razão, em relação à pedofilia, pode-se dizer que o alegado agressor é sacerdote católico e divulgar o seu nome, mas não se pode identificar como cigano, ou negro, o suspeito de um desacato, ou de uma agressão?! Onde estão, afinal, os que se propunham silenciar os haters nos media e nas redes sociais?! Por que razão as mensagens racistas são censuradas nessas redes, mas não os discursos de ódio contra a Igreja?!

Divulgue-se, pois, quantos padres, professores, treinadores, políticos, etc., foram condenados, por pedofilia. Se o Parlamento não autorizar, ou o Governo não o fizer, que a imprensa reconheça que são essas instituições que, de facto, são as verdadeiras encobridoras, porque não estão interessadas em acabar com os abusos de menores no nosso país. Enquanto o Estado o não fizer, não o faça a Igreja, nem a Comissão Independente, pois estaria a ser cúmplice do sistemático encobrimento de 97% dos abusos de menores. O Estado não pode exigir a verdade sobre 3% dos crimes de pedofilia e, ao mesmo tempo, encobrir os restantes 97%! São precisos católicos – leigos, padres e bispos – que não tenham medo de defender a Igreja e de exigir ao Estado a verdade a que todos, como cidadãos, temos direito. Já é tempo de a Igreja portuguesa denunciar tanta discriminação e hipocrisia.

Só uma política da verdade, e de total transparência, pode pôr termo ao drama dos abusos de menores. Os fanáticos obcecados (só) com a pedofilia na Igreja, e os que, no extremo oposto, negam a evidência deste crime hediondo nas estruturas eclesiais, têm um traço comum: o desprezo pelas vítimas. Por isso, há que pôr, em primeiro lugar, as crianças. Minha é, também, a dor que dilacerava o coração de Augusto Gil, na sua Balada da neve: “Que quem já é pecador / sofra tormentos, enfim! / Mas as crianças, Senhor, / porque lhes dais tanta dor?! … /Porque padecem assim?! … / E uma infinita tristeza, / uma funda turbação / entra em mim, fica em mim presa / […]/ – e cai no meu coração.