Caminhei cerca de oito quilómetros a pé da ‘cidade de cimento’ de Quelimane ao bairro periurbano da Madal, no norte de Moçambique. Passada a primeira povoação, continuei na única estrada de terra batida ladeada por mangais despovoados. Ao início da manhã havia muita gente a caminhar em sentido contrário em direção à cidade. Iam a pé e sobretudo de bicicleta, muitas fazendo de ‘táxi’. Também circulavam umas poucas motorizadas. Em qualquer caso, algumas transportavam sacos com sal, farinha, carvão, milho, amendoim, fardos de lenha, havia um cabrito rechonchudo torturado a cordas contra o suporte da bicicleta, entre outros bens que, em geral, iriam ser negociados nos mercados da cidade. Como eu e o guia que me acompanha, poucos eram os que ao início da manhã se afastavam da cidade. Entre esses, uns quantos transportavam bens trazidos da cidade: tábuas polidas, portas de casas, grades de bebidas como a ‘2M’, a cerveja nacional, entre outros.
Entretido com a paisagem, a caminhada, o movimento ou a conversa, a certo passo alertou-me um sinal do poder estado, ou melhor, da sua ausência. Atravessava uma ponte metálica, herança colonial que passa por cima de um dos afluentes do rio. Junto à margem oposta havia um pequeno engarrafamento. Ora passavam os de um sentido, ora os do sentido contrário. De perto vi que naquela parte só é possível prosseguir a pé porque o tabuleiro da ponte fica reduzido a uma largura pouco maior do que a de uma das vigas metálicas. Bicicletas e motorizadas têm de ser levadas pela mão. Algumas das cargas exigem destreza aos que as transportam porque o risco de queda não deixa dúvidas. Daí a ausência de carros ou camiões naquele circuito.
A ponte serve muita gente que habita numa das províncias mais populosas e economicamente mais periféricas de Moçambique, a Zambézia. A sua restauração ou reconstrução valerá um quase nada comparado com os sofisticados investimentos em betão que todos os dias vemos crescer em Maputo, a capital no extremo sul.
Quem andar pelo país apercebe-se do fascínio civilizacional, cultural, ideológico pela cidade e pelo que ela representa, muito em particular pela cidade grande, os mesmos espaços que num passado não muito longínquo eram a reserva civilizacional do colono. Há semanas na Matola (Maputo), um dos indivíduos comuns com quem vou falando opinou (cito de cor): ‘A diferença é que no tempo colonial os brancos iam para o mato e agora os nossos dirigentes ficam só na cidade’. Tese exagerada, porém sintomática.
Ela conduz ao enigma das raízes culturais dos africanos habitualmente rotuladas de ‘profundas’. Ou são de tal modo profundas que dificilmente se rompem ou, por serem profundas, os próprios rompem-nas sem retorno para abrirem caminho a uma alteridade identitária ultra-acelerada. Por essa razão, escudam-se num mal disfarçado estado de negação antieuropeu.
Não faz muitos anos, um intelectual e político negro moçambicano criticava com aspereza o facto de a sua sociedade ser regulada pelo que designava por “norma branca”, uma herança colonial perversa ainda não ultrapassada. Por sua causa, explicava, os autóctones abandonaram a sua matriz identitária, cultural e civilizacional africana. Curioso é que esse mesmo intelectual e político sugeriu que a entrevista que lhe solicitei decorresse no luxuoso hotel Polana, em Maputo, vestia-se da mais apurada indumentária de origem europeia, exprimia-se num português límpido de fazer inveja e é descendente de uma família de assimilados, a elite autóctone criada no tempo colonial. Ainda que não quisesse julgá-lo, saltavam à vista as dissonâncias entre discurso e práticas, entre atitudes e comportamentos.
Prosseguindo a caminhada na estrada de terra batida e quando a ponte metálica se perdeu da vista, aproximei-me de um troço no qual a areia solta dificultava um pouco mais a circulação. Nova revelação: afinal o poder do estado dava um ar da sua graça junto das pessoas comuns. Cerca de meia dúzia de polícias municipais mandavam parar os transeuntes para lhes exigirem a licença da bicicleta e o documento da permissão de condução. Os azarados ou distraídos tinham de pagar uma multa para seguirem viagem. O guia informou-me que era de cinquenta meticais e, de seguida, tinham de ir tratar da legalização na cidade. O custo era de cento e cinquenta a duzentos meticais, valor muito acima de um salário diário médio, se se quisessem livrar de futuros incómodos.
Como o magal que ladeia a estrada tinha zonas sem água, em vez de regressar à procedência, um ou outro ciclista indocumentado metia-se pelo mangal lodoso, por vezes com passageiros ou carga, e saía mais à frente contornando as autoridades, um ou outro a barafustar contra os abusos do poder e contra o matope (lama) agarrado ao calçado.
Não sei se tal controlo policial faz sentido. O que sei é que o episódio trouxe-me à memória relatos dos piores dias da guerra civil (1976-1992) quando as pessoas dificilmente conseguiam passar por certos controlos nas estradas sem que fossem molestadas por militares. Estes poderiam confiscar-lhes bens conseguidos e transportados a muito custo ou cometer todo o tipo de abusos no caso de os viajantes serem renitentes. O tempo passa e as pessoas vão suportando os fardos da vida.
No destino, o bairro periurbano da Madal, tive a sorte de falar longamente com o régulo. Conserva na memória a permanência por seis meses em Portugal, no ano de 1958, e de então ter ouvido falar na campanha presidencial do general Humberto Delgado. Tinha treze anos quando começou a trabalhar, em Quelimane, como empregado doméstico do comandante do navio ‘Lúrio’. Próximo do rio que Vasco da Gama batizou de ‘Bons Sinais’, entre outros assuntos, o régulo contou a sua versão da história do império colonial, a que sobrevive com as pessoas que (também) o viveram. A outra é a versão rainha, a dos livros e das universidades.
Por alguma razão vou preferindo o sentido atribuído à vida e ao tempo que passam pelas pessoas comuns antes que os mais velhos se desliguem da vida e, com eles, as suas subjetivas e indiscutíveis verdades.