O Parlamento Europeu começou o processo de audições dos comissários indigitados no passado dia 30 de setembro. De parte a parte, para quem pergunta e para quem responde, é um processo exigente e rigoroso que valoriza o modo de fazer política.
Dos 28 candidatos indigitados, 26 foram já ouvidos. Dois nem sequer se apresentaram a provas – o húngaro e a romena – porque foram logo rejeitados no escrutínio inicial da Comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu. Houve ainda o chumbo estrondoso de Sylvie Goulard. As duas audições e as 62 páginas de esclarecimentos adicionais, produzidas com a preciosa ajuda da máquina bem oleada dos serviços da Comissão Europeia (CE) que iriam ficar sob a sua tutela, não conseguiram salvar Goulard. Este foi, por um lado, um duro golpe para Macron, que escolheu a dedo o vasto portefólio que seria entregue à mulher que foi sua apoiante desde o primeiro momento, e por outro lado foi uma demonstração do poder do Parlamento Europeu (PE). O PE recusou que no colégio de comissários se sentasse alguém que não teve condições para continuar como ministra no governo francês, após um processo judicial ainda não encerrado.
Contudo, se houve chumbos estrondosos, também houve vitórias surpreendentes. Schinas, o candidato grego, responsável pela Proteção do Modo de Vida Europeu (seja lá o que isso for) passou à primeira, sem dificuldades, relembrando ao PE que este tinha aprovado Ursula Von der Leyen como presidente da CE, bem como as suas orientações políticas das quais já constavam as da pasta para que era indicado.
A vice-presidente indigitada Suica, a candidata croata, também foi aprovada à primeira apesar de todas as dúvidas levantadas (e não inteiramente esclarecidas) sobre a adequação das suas opiniões sobre direitos reprodutivos das mulheres (contra a legalização do aborto) e minorias sexuais (foi contra o reconhecimento dos direitos dos LGTBQI+) face ao conteúdo da pasta que lhe cabe: Democracia e Demografia.
As melhores prestações pertenceram ao italiano Paolo Gentiloni, ao belga Didier Reynders e a Elisa Ferreira. O Comissário indigitado para a Economia (Gentiloni) assumiu compromissos muito importantes para o futuro da União Europeia em matéria de reformas económicas. Destaco, entre eles, o de combater práticas de concorrência fiscal desleal entre os Estados-Membros. Já Elisa Ferreira (Coesão e Reformas) defendeu que a forte coesão entre os Estados-Membros é um elemento fundamental para que as políticas ambientais avancem de uma maneira justa e eficaz, bem como a necessidade de maior simplificação no acesso aos fundos e de maior inclusão social. Por último, na Justiça, Reynders apresentou uma visão clara relativamente à proteção dos consumidores no mercado digital e à responsabilização das grandes plataformas em matéria de privacidade.
Para mim, além da necessária análise setorial enquanto vice-presidente da Comissão do Mercado Interno e Proteção dos Consumidores e membro das Comissões para a Indústria, Investigação e Energia e Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade de Género, o mais interessante foi verificar, em síntese final, que dois temas estiveram em grande destaque nas várias audições, como uma espécie de desafio e missão comum para todos os comissários: o da transição digital e o da ambiental.
A transição digital vai desde a inteligência artificial à digitalização da economia, cada vez mais assente em plataformas. A transição ambiental justa visa combater as alterações climáticas e promover a descarbonização da economia, sem comprometer a coesão social e territorial.
A resposta mais repetida ao desafio da transição digital já constava das orientações políticas da Presidente-eleita da CE: avançar com propostas legislativas para uma abordagem coordenada ao nível europeu relativamente às implicações éticas e humanas da inteligência artificial, nos primeiros 100 dias da Comissão. Estarei especialmente atenta a esta promessa, uma vez que é fundamental agir nesta área para conquistar a confiança dos cidadãos e garantir que as rápidas mudanças na área do digital são colocadas ao serviço das pessoas, sem deixar ninguém para trás. Questões como a proteção e a privacidade dos dados, a responsabilização das plataformas pela utilização e segurança dos mesmos, estiveram sempre presentes, embora por vezes ainda vagamente respondidas.
A audição de Margrethe Vestager, desta vez indigitada para Vice-Presidente Executiva responsável por Preparar a Europa para a Era Digital e Comissária para a Concorrência foi segura, mas não particularmente impressionante no dossier digital. Respondeu, por exemplo, de forma tímida e pouco convincente sobre como iria reduzir os encargos administrativos para as micro, pequenas e médias empresas, usando a tecnologia digital. Nesta mesma área, a agora-rejeitada Sylvie Goulard tinha propostas um pouco mais concretas: propunha, por exemplo, a criação de um modelo de governança dos dados à escala europeia que facilitasse a utilização de dados para objetivos de interesse público, como é o caso da saúde. O que é certo é que nenhuma das audições deixou passar em branco as oportunidades e os riscos trazidos pela transformação digital.
O outro grande tema que marcou estas audições foi a transição ambiental justa. A mensagem da necessidade da mudança esteve presente tanto nos discursos dos comissários indigitados como nas perguntas dos eurodeputados e eurodeputadas. Em particular, o Vice-Presidente indigitado Frans Timmermans defendeu o Pacto Ecológico Europeu (“European Green Deal”), que também irá ser apresentado nos primeiros 100 dias da Comissão.
Ao contrário do que sucedeu no digital, notei com agrado que foram avançadas propostas mais concretas para gerir esta transição, nomeadamente, o alargamento da economia circular a alguns setores como o têxtil e o alimentar, bem como o apoio financeiro à transição para energias renováveis (através do Fundo para a Transição Justa). E, apesar de ainda sobrarem algumas dúvidas sobre o financiamento do Pacto — uma das questões que mais divide o PE e o Conselho Europeu no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual –, ficou claro que a neutralidade climática é um dos objetivos prioritários para a nova Comissão.
Finalmente, se é verdade que vivemos num verdadeiro xadrez político nestes dias, também é verdade que no final ganhou a democracia. Alguns líderes europeus manifestaram o seu descontentamento com a rejeição dos seus candidatos. No entanto, vale a pena lembrar que o Parlamento Europeu é a única instituição europeia diretamente eleita e que é através de exercícios como este que a qualidade e a transparência da política democrática saem reforçadas.