Na semana em que estou a escrever estas linhas decorreu a apresentação perante a Comissão Parlamentar de Educação e Ciência de um memorando a cujas linhas o autor, José António Salcedo, deu acesso prévio na sua página do Facebook. Sou um seguidor de longa data do professor e empresário, com o qual partilho muitas vezes opiniões sobre este e outros assuntos, e sempre achei que deveríamos estar atentos àquilo que é a sua opinião no que à educação diz respeito. Isto atendendo à sua experiência no mundo académico (que inclui Stanford e a Universidade do Porto) e a sua experiência empresarial (aqui e na Noruega). E louve-se esta recetividade do parlamento, embora tardia.

O Memorando é muito abrangente em termos de educação. O ensino superior é aquele que está menos detalhado. Mas é por isso que o escolhi para estes parágrafos, para que a nossa opinião não seja feita dos detalhes, mas sim das linhas orientadoras. E, numa nota de rodapé, Salcedo diz, e eu transcrevo, “Uma escola superior que não saiba estabelecer o perfil dos alunos que quer ter e/ou não pretenda fazer a sua seleção, assumindo por ela completa responsabilidade, é uma escola que não deve existir e que deveria ser encerrada”.

Para quem, como eu, já leva mais de meio-século de vida neste retângulo estranhíssimo no fim da Europa, sabe que já tivemos todo o tipo de “petróleo”, incluindo petróleo. Refiro-me, não à rocha líquida, mas a tudo aquilo que achamos que nos vai fazer andar todos vestidos de milionários árabes a comprar frotas de automóveis para as esposas. Os mais novos conseguem perceber facilmente que no fim ficaram só os “camelos”, mas, para terem ideia, já foram as plataformas logísticas, a energia eólica, a floresta (o “petróleo verde”), o sol, o mar e ainda mantemos a esperança de achar o petróleo propriamente dito. Claro que, como em todos os países razoavelmente civilizados, existe de tudo um pouco, gerado pelo muito trabalho que dá. Mas, por alguma razão estranha que me escapa, achamos que nos vai aparecer uma extraordinária prosperidade só porque somos um povo ungido. Os outros é que precisam de estudar e trabalhar, para nós basta a simples existência. Os demais devem honrá-la, proporcionando-nos um pleno e raro bem-estar.  Talvez por isso façamos tudo da maneira que nos apetece e nunca da maneira que devemos fazer.

Hoje, no mundo inteiro, não há recurso mais escasso que cabeças com raciocínio matemático. O petróleo, esse, bem ou mal, brota do chão em vários cantos do mundo. Mas pessoas que saibam pensar de forma abstrata, não. O “petróleo” dos dias de hoje refina-se em neurónios, programas de computador e folhas de papel garatujadas. Dir-se-ia que Portugal, pela primeira vez desde que o ouro do Brasil se ficou por lá, estaria numa posição, se não privilegiada, pelo menos avançada face aos outros todos. Não por sermos o povo de Deus, mas porque não temos muito mais em que nos distrair.

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O memorando de Salcedo aparece, curiosamente, uma semana depois de um evento onde estive na qualidade de vice-presidente da DSPA, em que se debatia a relação da Matemática académica com a economia envolvente. Na ordem do dia, discutia-se o estranho paradoxo de apesar do “petróleo” dos dias de hoje ser algo em que poderíamos estar muito bem colocados, a estratégia do estado parecer estar a ser definida por quem quer garantir exatamente o contrário, de forma que mais uma vez fiquem apenas os “camelos”. É que numa altura em que a educação feita de elevados níveis de abstração se torna fundamental, a estratégia do país é eliminar lugares nas melhores faculdades de engenharia e ciências para abrir vagas no interior. O que tem uma qualquer lógica associada, que sem esforço conseguiremos perceber, mas não coerente com os interesses nacionais. Os mercados europeus precisam com urgência da massa cinzenta dos portugueses, mas a república portuguesa responde com uma aposta no valor do metro quadrado na Covilhã. Precisamos de aumentar as vagas em Matemática e Física nas faculdades do litoral onde está a capacidade de educar, mas a república aposta em cursos de ciências sociais no interior. A ajudar à festa, o governo anuncia que vai reduzir as horas letivas de Matemática no ensino não superior para reforçar as “ciências” sociais, uma coisa que a nossa economia precisa tanto como de uma bancarrota (mais uma). Sim, há “petróleo” para extrair, mas o que o pessoal gosta mesmo é de plantar batatas.

O que é verdadeiramente chocante no nosso caso é que já ultrapassámos a fase de estoirar dinheiro em patetices. Nós agora apostamos muito mais, apostamos as nossas vidas. Porque por cada miúdo que é desviado da educação na abstração, não existe um para o substituir. Os seres humanos reproduzem-se no tempo, mas não no espaço. É que o dinheiro, embora custe, imprime-se. Os nossos filhos não. A verdade é que as melhores escolas têm capacidade instalada para acolher os alunos que as quiserem. Se têm ou não têm, é da responsabilidade delas de se promoverem e de levarem os nossos filhos ao nível educacional mais elevado possível. Que sentido pode fazer a admissão de um aluno a um curso de Física só com média de 18,25? Principalmente quando há uma economia inteira esfomeada por pessoas com aquelas qualificações e que não vai acabar tão cedo? Repare o leitor que o problema não está nas pessoas que entram com 18,25, mas naquelas que não entram com 17,8 ou mesmo 14,15 e que são atiradas para formações com menor valia económica.

Agora, pensemos no porquê. Salcedo no memorando diz aquilo que os deputados devem ouvir, se é que não sabem já: “(…) cada escola superior deve realizar as provas que entender para selecionar os alunos que pretenda admitir, de acordo com as metodologias e o orçamento que entenda aplicar. Os alunos devem ser livres para se candidatar às escolas superiores que melhor entendam e para fazer a sua escolha final de acordo com os resultados obtidos nas candidaturas que tenham realizado.”. Isto é tão óbvio que o absurdo é que alguém precise de dizê-lo em plena câmara legislativa de um país da Europa do séc. XXI.

Mas, ainda assim, vamos ser ingénuos e questionar se isto é verdade. Vamos fazê-lo defendendo o contrário. E defender o contrário é dizer que um conselho científico de uma universidade, repleto de gente de cabelos brancos, títulos académicos tirados em dia útil e cabeça no percentil 99 da inteligência humana, não tem capacidade para decidir como e que alunos deve ensinar, se os tiver para ensinar. Defender o contrário, é dizer que essa decisão deve ser atribuída a um conjunto de amanuenses, assalariados do ministério da educação, dotados de poderes divinatórios escondidos. Defender este contrário, faz sentido? Não faz, pois não?

A boa notícia é que o crescimento económico, seja de que sociedade for, vai fazer-se explorando este petróleo humano. Já foi descoberto há anos em países muito mais pequenos que o nosso, como Israel ou a Suíça, e muito menos populosos que o nosso, como a Finlândia. E eles continuam a extraí-lo e a estudar como podem melhorar. Com a escassez que existe sabem onde ir buscar mais. Aos países que acham que devem fortalecer os horários das ciências sociais com o tempo da matemática e combater a desertificação com os corpos dos filhos dos outros. O que para nós não terá grande problema porque vamos estar confiantes que um dia destes começa a brotar dinheiro dos nossos pés sem ser preciso fazer grande coisa. Afinal, a que outro povo atribuirá Deus a sua preferência?

(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association