Muito se tem falado na importância do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para Portugal e para a Europa.
Não existe qualquer dúvida que, após um ano de pandemia, com a economia a agonizar em múltiplos setores, será fundamental esta injeção de dinheiro, a que alguns chamam de “bazuca” e outros de “vitamina”, para alavancar a recuperação económica e para se concretizarem reformas estruturais fundamentais para o país.
Para que este se afirme como “o Plano de todos os Portugueses”, como refere o Governo, é essencial que o mesmo cumpra três objetivos fundamentais: dinamizar a economia e gerar emprego; ser aplicado em infraestruturas e serviços julgados prioritários; e ser executado no curto prazo de cinco anos e meio (2021-26).
Analisando a proposta do PRR que o Governo colocou em discussão pública, e no que diz respeito à dinamização da economia e à geração de emprego, não podemos ficar alheios ao facto de que a iniciativa privada inovadora e criadora de valor acrescentado, incluindo as Pequenas e Médias Empresas (PME), ficou globalmente à margem deste plano, quando o desafio é capacitar as empresas num quadro de ação cada vez mais global. A força económica de Portugal assenta nas PME, as quais estão dispersas pelo todo nacional e são consideradas, pelos autarcas, como essenciais para a economia local. Ora, este PRR não garante a sua elegibilidade e consequente mobilização, o que prejudica a coesão nacional, além de que não assegura o indispensável equilíbrio na inclusão de projetos da administração pública e da iniciativa privada.
Quanto às infraestruturas e serviços julgados prioritários, verifica-se que não foram consideradas áreas que, sendo maioritariamente responsabilidade autárquica, são imprescindíveis à gestão e modernização dos territórios e que, face ao efeito dinamizador das próprias autarquias locais na economia, muito contribuiriam para a desejável polarização e descentralização do investimento. São exemplos:
- Renovação das redes de água e saneamento – não é aceitável que, num cenário de crescente escassez de água em todo o território nacional, o plano não preveja medidas de apoio mais alargadas para aquele que é o bem mais essencial à vida. Destaca-se, nomeadamente, a ausência de apoio para obras urgentes de requalificação das redes obsoletas, de redução das perdas de água e de substituição de condutas de fibrocimento, de modo a promover a gestão eficiente dos recursos;
- Qualificação e expansão da rede viária – lamenta-se que o PRR olvide as dificuldades dos municípios na garantia das condições de manutenção da sua rede estradal. Mesmo para os “missing links”, da responsabilidade das Infraestruturas de Portugal, até hoje ninguém explicou como aparecem uma dezena de “eleitos” e umas centenas de “excluídos”;
- Recuperação e valorização dos setores da cultura e do desporto – a pandemia da Covid-19 veio evidenciar que o bem-estar social, quer individual, quer coletivo, depende também do enriquecimento cultural e da atividade física. No PRR, não há nem uma linha sobre estes setores de atividade;
- Modernização da iluminação pública – associada há vários anos à alta fatura energética, por falta de investimento em novas tecnologias, considera-se que a iluminação pública é crucial à segurança das populações e à vivência dos espaços públicos, pelo que deverá ser contemplada neste plano;
- Gestão e valorização de resíduos – como poderá Portugal assumir-se como um país de práticas sustentáveis se não aproveitar o PRR para reformular definitivamente os sistemas de recolha e tratamento de resíduos, na ótica da economia circular? Mais uma área autárquica esquecida;
- Preservação do litoral – os ecossistemas naturais da orla costeira necessitam de uma atenção especial face aos riscos e pressões existentes. O tema passa ao lado do PRR;
- Economia do mar – sendo Portugal um dos países com maior Zona Económica Exclusiva no Oceano Atlântico, estranho é que o conceito de “pesca” apenas seja referido uma só vez em todo o plano. O mar é uma fonte de recursos gigantesca que o país não pode desperdiçar;
- Turismo – é inacreditável que um país que, nos últimos tempos, depende brutalmente das receitas provenientes desta atividade económica não contemple um cêntimo para a sua recuperação.
Em suma, no documento que esteve em discussão pública ficaram inexplicavelmente de fora muitas áreas que são responsabilidade própria das autarquias, às quais o Governo foi completamente insensível, preferindo canalizar verbas para projetos da Administração Central e do seu setor empresarial. Certo é, que ao fazermos uma leitura das propostas de PRR de outros países da União Europeia, já entregues em Bruxelas, constatamos que nelas estão contidos muitos destes temas.
No que diz respeito à obrigatoriedade do PRR ser executado no curto prazo de cinco anos e meio (2021-26), tal implica reconhecer, antes de mais, que não podemos nem devemos correr riscos.
Portanto, quando se fala em megaprojetos da Administração Central, a exemplo de infraestruturas ferroviárias pesadas (comboio e metro), é justificável que se tema que o tempo não seja suficiente para estudos, projetos, concursos, expropriações e execuções de obra, para além dos habituais litígios e processos judiciais. Sabemos que a concretização destes projetos demora décadas e, se não forem executadas as verbas, as mesmas serão definitivamente perdidas para Bruxelas.
Assim, é fundamental reafirmar que, pela sua proximidade à população e, consequentemente, ao tecido empresarial, pela sua efetiva capacidade de concretização dos investimentos e pelo seu efeito indutor na economia, as autarquias locais são, de acordo com o princípio da descentralização administrativa, agentes indispensáveis no processo de execução desta estratégia de recuperação e resiliência.
Não obstante, para que isto possa acontecer, é necessário que os autarcas e as autarquias sejam envolvidos na especificação e na execução do PRR, facto que, até à data, lamentavelmente, considero que não aconteceu.
Oxalá não seja tarde demais!