Fernando Pessoa foi o melhor crítico literário português. Nota-se isso nas observações de pormenor que é capaz de fazer sobre frases ou palavras, sem que quase se dê pelo esforço. Em 1912 ainda não tinha publicado nenhum poema bom; mas devia andar a pensar muito em dois versos de Teixeira de Pascoaes (1877-1952), porque os citou por escrito em três ocasiões: “A folha que tombava / Era alma que subia.” Pessoa observou que nesses versos “Pascoaes não compara a queda da folha à ascensão da alma — a queda da folha é, materialmente, a subida da alma.” Reparou que Pascoaes, ao contrário dos outros poetas, não estava a dizer que a folha é como a alma; estava a dizer que a folha a cair é a alma a subir. Mais ninguém tinha notado.
É opinião corrente que uma coisa não pode ser outra coisa, e que uma coisa que desce não pode ser outra coisa que sobe. Ter-se-á Pascoaes enganado na metafísica, e também na física? Os versos pertencem a um poema, “Elegia do amor,” publicado em 1906. Descreve os passeios no campo e as conversas de dois namorados em “tardes outonais.” Nesses passeios a namorada levava na mão um lírio, que é uma flor que raramente existe no Outono. Pelos vistos Pascoaes cometia também exageros de botânica. Mas republicou o poema várias vezes e nunca aproveitou para corrigir nenhum deles.
Como se pode ignorar tão sistematicamente a metafísica e a física, e as expectativas botânicas razoáveis? A contumácia de Pascoaes intrigava Pessoa. Os dois versos que cita concluem uma sequência mais longa, com seis versos: “Tudo em volta de nós / Tinha um aspecto de alma. / Tudo era sentimento, / Amor e piedade. / A folha que tombava / Era alma que subia . . .” No segundo verso dessa sequência aparecera pela primeira vez a palavra a que Pessoa dá atenção: a palavra “alma.”
A observação crítica de Pessoa consiste em notar que Pascoaes no seu poema usa frases com a palavra “alma” (e descreve a alma) de uma forma diferente da habitual. Não nos diz o que acha que Pascoaes estava realmente a fazer. Talvez pensasse que ninguém iria perceber nada da explicação, ou, como um raro crítico sugeriu cem anos depois, talvez tivesse decidido reservar a correcção dos erros de Pascoaes para uma ocasião futura, e por outros meios. A expressão mais misteriosa do poema de Pascoaes (e que já tinha usado noutro poema) é no fundo “aspecto de alma.” A observação de Pessoa ajuda-nos a perceber a tese extraordinária de Pascoaes: quando tudo tem aspecto de alma uma coisa pode ser outra coisa, e uma coisa que desce pode ser outra coisa que sobe. E se o melhor exemplo de subida pode ser uma descida, então também não admira muito que haja lírios no Outono.