Um filósofo poderia dizer que a pobreza é um estado de espírito. Um romântico, como alguns realizadores cinematográficos e os que escrevem narrativas sobre pintores e escritores, tendem a considerar que o tempo de pobreza ampliou a capacidade criadora. Ou os poetas, cantados como no La Bohème de Aznavour. A realidade não é bem essa, infelizmente.
Os autores das “políticas sociais” e por arrasto das económicas, olham para a pobreza enquanto um número, um dado estatístico. Até um nobel da economia tropeça quando fala. Krugman fala em milagre da economia portuguesa. Eu equiparo esta butade à de um médico dizer que os exames do coração estão excelentes, apesar de todos os outros órgãos estarem em falência, cirrose, cancro do pulmão, insuficiência renal…
O fim da luta de classes, do operariado clássico, das “cinturas industriais”, dos trabalhadores rurais em casas agrícolas, todos configurando grupos com culturas e enquadramentos socioeconómicos comuns, tiraram a razão de existir e a forma de afirmação sobretudo à extrema-esquerda. Numa década substituíram as lutas sociais por lutas sobre as “teorias de género”, do aquecimento global, desdobrando-se em debates espúrios sobre qual a vogal última do substantivo, ou sobre a marcação do dia do apocalipse. Mas para quem já vive o inferno terreno diariamente falar de um ou dois graus não chega a parecer o purgatório.
Para quem fala sobre economia, um pobre é na prática um miserável. Uma pessoa que não consegue sequer comer, quanto mais arrendar uma casa, ou cuidar das doenças que sempre transportam. A pobreza é muito mais abrangente e, hoje, transversal, não se situa na indústria, aliás nunca lá mora (hoje um trabalhador industrial ganha mais que o filho licenciado), nem no campo (onde a mecanização intensiva reduziu, também por falta de oferta, a quantidade de mão-de-obra, tendo esta aumentado a qualificação e o valor recebido, também aqui um tratorista tem um vencimento acima da filha arquitecta).
Hoje, a pobreza, não se enquadrando em tipificações, por resposta só tem frases feitas, que se resumem a pedidos de aumento do ordenado mínimo.
Os apoios familiares do passado, quando a economia doméstica era muito apoiada na horta, no galinheiro e na pequena pocilga acabaram, pelo que as pessoas têm que (sobre)viver apenas com o rendimento do trabalho.
A cada dia que passa o número de pobres reais aumenta. O limiar da pobreza passou a estar ao alcance de qualquer mão aterrorizada. O medo da pobreza, só equiparado ao da morte, ajuda ao acréscimo também significativo dos problemas de saúde mental, de violência doméstica e à desestruturação das famílias. Mas estes estados de alma são pouco conhecidos pelos nossos governantes, para quem pobre é um sem abrigo mais ou menos dependente, sem grande solução e que na prática ignoram.
Os noticiários falam de guerras longínquas de orçamentos de milhões, mas não de políticas de erradicação da pobreza.
Mas os quase dois milhões de pobres ou em risco de pobreza são outra coisa. São pessoas que na sua maioria trabalham, mas que não conseguem sustentar as famílias. Que não põem proteínas na mesa, que não conseguem aquecer as casas no inverno, não têm acesso à medicina privada, ou mesmo aos medicamentos que lhes são receitados na pública. Dois milhões é um número conservador a que acrescem os mais de 60% que têm dificuldade em pagar a casa e os 12% que acreditam que a vão perder em 5 anos.
As formas de encarar o problema têm sido via subsídio, sem estudos de suporte e sem resultados já que o nível de pobreza não tem decrescido uma décima.
No antigo regime propagava-se o “viver habitualmente”, só que hoje ninguém quer viver habitualmente.
Há uns anos foi publicado um livro, A Economia dos Pobres, onde foram medidas e pesadas soluções. Pouco, pequeno e possível. Uma das observações feitas é que quando a pobreza é muita, se houver um bónus, mesmo de 50% do rendimento, a primeira coisa que um pobre faz é compensar-se, comer um bolo, tomar o pequeno-almoço fora que tantos criticam, trocar o telemóvel, comprar um plasma. Compreende-se.
Na Índia são conhecidos alguns exemplos, num é financiado um dos filhos, não o mais velho, mas o mais capaz, para que depois possa, no futuro, ajudar os que ficam. Noutra só se apoiam as mulheres e as crianças.
Há dias ouvi a senhora ministra da presidência divagar sobre a realidade de hoje, onde os pais já não consideram os filhos como a necessária fonte de rendimento e que tal se devia à escolaridade imposta. É uma meia verdade. De facto, os filhos deixaram de ser uma fonte de receita da família, mas ao passarem a ser uma “fonte” de despesa, nos agregados pobres limitam o crescimento da população, ou aumentam a dimensão da pobreza.
Acresce que jovens vindos de famílias de fracos recursos que não acedam ao ensino superior acabam a escolaridade obrigatória sem quaisquer competências laborais. A escolaridade obrigatória não dá competências objectivas. Não promove trabalho manual. Não ensina a mudar o óleo a um carro, a substituir um interruptor ou uma tomada, a mudar uma torneira. A ganhar alguma competência comercial.
Há dias um empreiteiro foi multado por ter empregado um jovem, com idade de 18 anos menos 2 meses, por o estaleiro de uma obra ser um local de risco elevado.
Sem se facilitar o emprego de jovens este vai manter-se alto.
Num artigo da Drª. Susana Peralta, no Público, a professora divulga dados que confirmam que quem nasce numa família de baixo rendimento tem grande probabilidade de continuar pobre toda a vida. Esta afirmação, suportada em números, não explica os outliers, os que conseguem fugir à estatística malévola. Estudos que faltam, para percebermos o caminho.
Uma coisa me parece básica, a redução da pobreza (não gosto do termo “combate” aplicado à desgraça) só pode ser conseguida à custa da subida da maré, da subida da riqueza geral do país. Até que se consiga esta subida, só panaceias que muitas são feitas pelas instituições de cariz social.
O governo diz que “combate” com os subsídios que vai dando. Como na antiga canção de Barata Moura, hoje brincam eles à caridadezinha.
O colapso do SNS leva que que os mais pobres não sejam tratados, mais doentes faltarão ao trabalho, mais faltas menos rendimento, maior pobreza. Os filhos, se adoecerem também faltarão mais à escola, mais atraso na aprendizagem, maior pobreza no médio prazo.
Na educação, a permanente falta de professores leva a que aqueles com mais posses terão explicações ou optarão pelo ensino privado. Pobres esperarão um milagre.
As greves de transportes que obrigam os mais pobres a faltar ao trabalho, com a consequente baixa no rendimento, coisa pouco discutida nos debates.
Num artigo que escrevi aqui, sobre a crise da habitação, também se consegue perceber a dimensão das dificuldades das famílias.
As empresas de microcrédito concedem incompreensivelmente crédito a juros inaceitáveis, trabalho que deveria ser feito pelo banco público.
A televisão pública passa programas de entretenimento ou debates sobre a economia dos ricos, não passa um programa pedagógico sobre economia dos pobres.
Os programas de culinária que também passam são sobre requintados pratos, nenhum sobre como alimentar uma família com 5€.
Mas sobretudo apoio às próximas gerações. Um grande factor de pobreza é a falta de confiança no futuro, por favor comecem por aí, sejam credíveis.