O aparecimento do Chega está a testar os limites do edifício político, institucional e social construído em Portugal nos últimos 50 anos, assim como as normas sociais de convivência democrática. Salvo raras excepções, como a intervenção da troika, até ao aparecimento de Ventura no espaço mediático, a democracia Portuguesa deparou-se com desafios suaves. A qualidade das instituições, a fibra democrática e liberal de políticos e cidadãos, e a capacidade de conviver com opiniões que, em muitos casos, são abjectas ficam visíveis nos tempos difíceis. Nos tempos fáceis, durante os quais os políticos se auto-policiam para conviver dentro do espaço normativo da democracia liberal, é fácil ser liberal. Agora, é preciso saber conviver com quem não gostamos. A polémica do último fim-de-semana já foi muito debatida. No entanto, não quero deixar de acrescentar alguns pontos ao debate.

1. Apesar de ser importante, o debate que aconteceu no último fim-de-semana foi, maioritariamente, tido entre elites mediáticas, académicas, culturais. No fundo, se quiserem, um grupo pequeno de pessoas, maioritariamente concentradas em Lisboa, que, de forma mais ou menos próxima, se conhecem todas de várias andanças políticas e públicas. Neste contexto, não podemos deixar de considerar o grande potencial para a falsificabilização de preferências e para a pressão social para a sinalização de virtude. Na prática, isto significa que há uma pressão social fortíssima para que muita gente utilizasse as suas redes sociais, ou os artigos de jornal para aqueles que têm privilégio de ter voz pública, para mostrar o quão indignada está com as declarações de Ventura.

2. Na era em que vivemos, a sinalização da virtude é fundamental para a construção de muitas personagens públicas que, no fundamental, acumulam crédito e capital social com a demonstração constante que estão do lado eticamente certo e correcto da história. Apesar não ter quaisquer dados sobre a matéria – uma experiência que seria, de resto, fascinante – adoraria perceber qual a diferença entre massas e elites sobre o comentário que André Ventura fez no parlamento acerca do povo Turco. Suspeito que seria menos abonatório para o povo Português do que aquilo que a bolha pensa.

3. Qual foi a indignação da elite Portuguesa? Observando tudo o que passou, a indignação não foi, alas, com André Ventura. Infelizmente, no contexto das afirmações de Ventura, esta foi até bastante suave. O líder do Chega já disse alarvidades muitíssimo piores ao longo da sua carreira política. A indignação ocorreu, sim, com José Pedro Aguiar Branco e a sua defesa da liberdade de expressão no parlamento. Segundo a tese vigente, o presidente da Assembleia da República não funcionou como guardião do discurso em plenário. Isto levanta, naturalmente, uma velhíssima questão: quem guarda os guardiões? Depois de Juvenal ter inicialmente criado esta expressão para brincar sobre casos de infidelidade no deboche Roma, a ciência política e a economia também se têm debruçado sobre a matéria, especialmente no contexto dos debates sobre delegação e agentes. No caso de um Presidente de uma qualquer legislatura não existe uma boa resposta a esta questão. A única maneira de guardar o guardião consiste na ameaça de o remover da sua posição institucional, levando-o assim a conformar a sua acção aos desejos da maioria dos deputados.

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4. E se um dia a maioria dos deputados for do Chega? O comportamento de Aguiar Branco cria um precedente e, no fundo, dá força a uma determinada orientação sobre o que é a liberdade na Assembleia da República. Se Aguiar Branco criasse um precedente na outra direcção, dando gás ao espírito censório do ar do tempo, caso o Chega lograsse ter um Presidente da Assembleia da República quem o poderia proibir de coartar o discurso de um deputado de extrema-esquerda? Na visão que Aguiar Branco propõe, necessariamente mais maximalista, todos os deputados são livres de dizerem o que pretendem. Não se abrem, assim, precedentes de tentar admoestar deputados pelo que dizem.

5. Naturalmente que os defensores da pulsão censória estarão já a pensar que a aplicação do regimento não deveria consistir na retirada da palavra, mas sim na advertência sobre o conteúdo do discurso do deputado. Neste ponto está o busílis da questão. Muitas pessoas que clamam pela intervenção do Presidente da Assembleia da República parecem ignorar que o conteúdo de um discurso parlamentar é eminentemente político e, ao sê-lo, está naturalmente sujeito às preferências dos actores. Não estamos, portanto, a falar de um discurso higienizado ao qual possam ser aplicadas regras burocráticas que permitam a um qualquer Presidente da Assembleia da República deduzir de forma objectiva e sem mácula se o discurso deve ou não ser admoestado. A própria apreciação que o Presidente da Assembleia da República faz sobre o discurso é política e é percepcionada pelos eleitores como tal. De resto, como o mandato desastroso de Augusto Santos Silva mostrou, o Chega soube tirar partido de forma inteligente da necessidade que o então Presidente da Assembleia da República tinha de, em tom professoral, dar lições sobre o que pode ou não ser dito em plenário.

6. Para último deixei a questão do discurso de ódio. Muitos dos argumentos para que Aguiar Branco interviesse aludem à utilização de discurso de ódio por parte de André Ventura. Este tem sido, aliás, muito para além de Portugal, um dos principais argumentos para restringir a liberdade de expressão nos últimos tempos. No entanto, lendo as definições de discurso de ódio de organizações internacionais vemos não só coisas distintas, como complicadas do ponto de vista interpretativo. As Nações Unidas, por exemplo, dizem que “até à data, não existe definição universal do conceito de discurso de ódio […]. O conceito ainda está em discussão, especialmente no que respeita à liberdade de opinião e de expressão, não discriminação e igualdade” (tradução minha). Pelo contrário, a definição do Conselho da Europa, que inspira a lei Portuguesa, é mais clara: “discurso de ódio é o tipo de expressão que incita, promove, espalha, ou justifica violência, ódio e discriminação contra uma pessoa ou grupo de pessoas, ou que os denigre por causa de atributos ou características pessoais como a “raça”, cor de pele, linguagem, religião, nacionalidade, origem étnica, idade, deficiência, sexo, identidade de género ou orientação sexual” (tradução minha). O problema desta definição é simples: a sua abrangência e latitude são tais que tornam o conceito inútil enquanto mecanismo para discriminar entre realidades sociais e políticas necessariamente diferentes. Parece-me de meridiana clareza que estamos perante um espectro e que existe uma diferença de grau entre as seguintes frases: “devemos matar todos os Turcos”; “devemos expulsar todos os Turcos do nosso país”; “os Turcos não são conhecidos por serem trabalhadores”. Ao fazer de tudo isto discurso de ódio, tornamos este conceito analiticamente inútil.

7. Os desafios que o Chega coloca à democracia Portuguesa são imensos. A pergunta sobre se o Chega, ou qualquer outro grupo parlamentar, pode dizer o que lhe apetecer no plenário é complexa e não tem resposta fácil. Como estou cheio de dúvidas, para já escolho a liberdade. Enquanto estivermos no contexto da liberdade, não estaremos de mãos atadas para lidar com iliberais.