Na semana passada, o Conselho Estratégico Nacional do PSD apresentou um documento com o título “Uma Política para a Infância”. Nele, o PSD faz uma série de propostas que visam promover a natalidade e contrariar o inverno demográfico que o país enfrenta. Sendo o problema demográfico uma das nuvens mais negras, senão mesmo a mais negra, no horizonte de Portugal, saúda-se que os principais partidos estejam alerta para este problema. Vale a pena lembrar que, no discurso de encerramento do Congresso do PS, também António Costa falou neste problema, sugerindo que a solução passará, necessariamente, por mais imigração.

Sendo um documento sério, as propostas do PSD merecem ser debatidas com seriedade, que é o que procuro fazer neste artigo, pelo menos em relação a três pontos: (1) atribuição de um subsídio fixo por criança, (2) gratuitidade e alargamento da rede de creches e (3) aumento das licenças de parentalidade.

1. Subsídio fixo por criança

Neste documento, propõe-se a substituição do Abono de Família (que apenas é dado às famílias mais carenciadas) por um subsídio fixo e universal. Confesso que me causa alguma estranheza esta ideia de pagar às famílias para terem filhos. Enquanto política de estímulo da natalidade, espero que seja mal sucedida e que não haja muita gente a ter filhos porque lhes pagam para tal.

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Mais do que considerar uma criança como um bem de mérito que merece ser subsidiado de forma a aumentar a sua produção, eu preferiria que se passasse a considerar as crianças como pessoas de corpo inteiro e que isso se reflectisse no IRS da forma mais natural possível, ou seja, substituindo o quociente conjugal por um quociente familiar.

Uma família composta por uma mulher que receba 4000€ por mês e por um homem que receba zero, no momento de pagar IRS, verá a sua taxa ser igual à de uma pessoa singular que receba 2000€/mês. Note-se que a taxa é que é igual, o imposto pago será o dobro (não é bem assim por causa das deduções específicas, e porque há alguns benefícios fiscais não proporcionais, mas, grosso modo, é assim). Ou seja, para a base colectável contam os 4000€ na mesma, mas a taxa a aplicar calcula-se com base num rendimento per capita de 2000€/mês.

Estranhamente, este cuidado de calcular a taxa de imposto com base no rendimento per capita desaparece quando entram filhos à consideração. Tenha eu 1, 2 ou 3 filhos, a taxa de IRS a pagar é essencialmente a mesma. Ou seja, para o IRS os filhos não são pessoas. Talvez um exemplo ajude a clarificar. Se eu for um pai solteiro a viver com uma filha de 20 anos que estuda na universidade vou pagar bastante mais impostos do que se casar (e sustentar) uma aluna universitária com a mesma idade. Isto porque, se eu for casado com a aluna, a taxa é calculada com base no rendimento per capita (ou seja, metade do meu rendimento), enquanto se viver com a minha filha a taxa é calculada com base no meu rendimento total. Como esquema de incentivos parece um pouco marado.

Uma vantagem de tratar as crianças como pessoas, considerando um quociente familiar em vez de um quociente conjugal, é que facilmente se pode incluir a terceira idade nesta política de família. É que, da mesma forma que as crianças são pessoas, os avós também o são. E uma família que tenha as três gerações a viver no mesmo tecto deve poder ver isso reflectido no IRS também. Se, por exemplo, eu além das minhas filhas, tiver o meu pai a viver comigo, por que raio não poderemos todos apresentar a mesma declaração de IRS, somando todos os rendimentos e dividindo por todos? Não é isto uma família? Por que motivo é que se anda a dar incentivos a pôr os mais velhos em lares de terceira idade (permitindo algumas deduções à colecta, desde que os pais não aufiram mais do que a pensão mínima) e não se facilita a vida a quem pode e prefere ter os seus pais junto de si?

Mas, voltando à questão da infância, no tempo do governo anterior, avançou-se (timidamente) neste sentido, considerando que, para efeitos de IRS, cada criança equivalesse a 30% de um adulto. Ou seja, uma família como a minha, casal com duas filhas, veria a taxa de IRS a pagar ser calculada com base no rendimento colectável dividido por 2,6.

Diga-se que compreendo perfeitamente que uma criança não valha tanto para efeitos de IRS quanto um adulto. E as crianças já recebem apoios do Estado de diversas formas, como vacinação gratuita, escola gratuita, universidades subsidiadas, etc. Considerando que já há um conjunto de transferências do Estado específicas para as crianças, então é razoável que se aplique um coeficiente inferior a 1. Mas 0,3 era manifestamente baixo.

A grande vantagem deste coeficiente familiar é que não se está a dar um subsídio por criança nem se está a pagar aos pais para terem filhos. Simplesmente se estaria a tratar a criança como uma pessoa e não como um bem de mérito. A grande desvantagem é que, comparando com a situação actual, as famílias de menores recursos que tenham filhos são menos beneficiadas do que uma família com mais recursos e com o mesmo número de filhos. Indo para um caso extremo, uma família com recursos tão baixos que não pague IRS não terá qualquer benefício em ter um filho. Mas um caso destes é um caso de pobreza que deve ser tratado pelos instrumentos de combate à pobreza, o que inclui os abonos de família. Vale a pena sublinhar que com a proposta do PSD as famílias mais pobres com filhos serão prejudicadas e há literalmente centenas de estudos que comprovam que a pobreza tem efeitos devastadores quer a curto quer a longo prazo nas crianças que a sofrem.

Para terminar com uma nota realista, porque a política é a arte do possível, como no passado o PSD já avançou com o coeficiente familiar para logo o PS acabar com ele, tenho de admitir que seja politicamente impossível garantir a sua aprovação. Se for esse o caso, a proposta do PSD (sujeita a alguma calibração de valores e garantindo que as famílias mais pobres não ficam a perder) parece-me melhor do que o actual sistema. Até porque há bons estudos que concluem que os incentivos financeiros têm um impacto positivo na taxa de fertilidade. Por exemplo, Guy Laroque (Sciences Po) e Bernard Salanié (Columbia University), usando dados para França, concluíram isso mesmo num artigo publicado no Journal of Applied Econometrics. O incentivo financeiro era particularmente importante na decisão de ter o terceiro filho.

2. Alargamento da rede de creches e a sua gratuitidade

Neste assunto não há muito a dizer. A única questão relevante é se esta é uma medida eficaz ou não. Fiz uma pesquisa pela literatura científica e dois assuntos estão bastante estudados. Um é o impacto de uma medida destas na participação laboral das mulheres. O outro é sobre o impacto de medidas destas na fertilidade das mulheres. Assuntos obviamente relacionados, mas diferentes.

Relativamente à participação feminina no mercado de trabalho, quase todos os artigos que li apontam para um efeito positivo. Ou seja, a existência de mais creches (e a sua subsidiação ou gratuitidade) aumenta sensivelmente a disponibilidade das mulheres para trabalhar. Por exemplo, Emanuela Cardia (Université de Montréal) e Paul Gomme (Concordia University), num artigo publicado na Review of Economic Dynamics, calibrando o seu modelo para os Estados Unidos, concluíram que quanto mais baratas fossem as creches mais tempo as mulheres dedicavam ao trabalho. David Domeij (Stockholm School of Economics) e Paul Klein (Simon Fraser University) concluem essencialmente o mesmo num artigo com modelo calibrado para a Alemanha e publicado na Review of Economic Studies. Como disse, há muito mais artigos sobre o assunto e quase todos apontam na mesma direcção.

Já relativamente ao efeito das creches na fertilidade, os resultados não são assim tão claros, havendo estudos credíveis que concluem que o efeito é positivo e outros que não encontram qualquer efeito. Dada a incerteza relativa a estes resultados, seria importante ter um estudo para Portugal. Infelizmente, não encontrei nenhum. No entanto, nos estudos que vi para países culturalmente parecidos connosco (Espanha e Itália), os resultados foram positivos. Por exemplo, Daniela Del Boca (Università di Torino), num artigo publicado no Journal of Population Economics, concluiu que a disponibilidade de creches em Itália aumentava quer a participação laboral feminina quer a taxa de fertilidade. Pau Baizán (Universitat Pompeu Fabra) chegou a conclusões semelhantes para Espanha.

3. Alargamento das licenças de parentalidade

Esta proposta deixa-me com muitas dúvidas. No documento, o PSD propõe que a licença de parentalidade paga seja alargada das actuais 20 semanas para 26. Mas, simultaneamente, diz que as primeiras 13 semanas são obrigatoriamente usufruídas pela mãe (em vez das 6 actuais) e as últimas 13 podem ser usufruídas opcionalmente por qualquer um dos pais. Na actual lei, parte da licença (25 dias úteis, 15 dos quais obrigatórios) é exclusiva do pai. Tanto quanto percebo, isso desaparece com a proposta do PSD.

O aumento da licença de parentalidade sem simultaneamente assegurar uma maior partilha da mesma entre o homem e a mulher é um erro. Dada a estrutura social em Portugal, é mais do que evidente que o aumento desta licença vai recair essencialmente sobre a mulher e isso tem dois efeitos negativos.

O primeiro efeito negativo tem a ver com a participação da mulher no mercado de trabalho. Mais uma vez, reforça-se o papel da mulher como cuidadora preferencial. Evidentemente, por muito que custe a algumas pessoas, isso vai levar a uma menor produtividade no trabalho (é difícil estar em casa a cuidar dos filhos e a trabalhar na empresa), aumentando os riscos das empresas que contratam mulheres em idade fértil. Com quase toda a certeza, uma medida destas irá aumentar o fosso salarial entre homens e mulheres.

E, se o primeiro efeito negativo é discutível, no sentido de que há quem não se preocupe com o fosso salarial e de que há quem não veja mal algum em que recaia ainda mais sobre as mulheres o peso de cuidar da família, o segundo efeito negativo é objectivo. Há estudos que mostram que um dos principais motivos para a baixa taxa de fertilidade nos países ocidentais é precisamente o de as mulheres não quererem mais filhos porque recai sobre elas quase todo o trabalho de cuidar das crianças. Isso é particularmente importante na decisão de ter o segundo filho.

A ideia descrita no parágrafo anterior foi confirmada num estudo de Matthias Doepke (Northwestern University) e Fabian Kindermann (Universität Bonn), que conclui que uma política que reduza o trabalho que as mulheres têm a tratar dos filhos é duas vezes mais eficaz do que um subsídio atribuído por filho. Ou seja, com esta proposta o PSD arrisca a estragar qualquer efeito benéfico sobre a natalidade que as propostas anteriores podiam ter, além de representar um recuo de vários anos na luta pela igualdade de género. Esta proposta, por muito linda que pareça, é uma cenoura envenenada para as mulheres.

Se querem aumentar a licença de parentalidade, a forma de o conseguir é simples. Façam-no de forma igualitária: 13 semanas para as mulheres e 13 semanas para os homens. Isso não só vai aumentar a disponibilidade das mulheres para ter filhos como vai levar a uma redução do fosso salarial entre homens e mulheres nas empresas. É bom quer para a natalidade quer para a igualdade de género.

Só para terminar, devo dizer que considero legítima a queixa de que a mulher é que carregou o filho durante 9 meses e que teve de o parir. Quem assistiu a um, sabe que um parto é violento e que a mulher precisa de tempo para recuperar. Para ter isso em consideração, basta separar o tempo específico para a mulher recuperar da gravidez e do parto (por exemplo, 4 semanas) da restante licença de parentalidade, que deverá ser dividida entre o pai e a mãe.