A pandemia, os números repetidos diariamente dos infectados, dos recuperados, dos mortos, dos internados, dos cuidados intensivos, os altos e baixos dos continentes e países levam-nos a esquecer ou subalternizar que, há vida – e morte – para além do coronavírus.
Mas há. E para além da vida doméstica, da política doméstica, das surpresas e tragédias do desconfinamento, multiplicam-se os acontecimentos na vida internacional – na grande e na pequena escala.
A Nova Constituição Russa
Tivemos um referendo, em que Vladimir Putin procurou sustentação popular para as mudanças e reformas na Constituição russa. Para além da mais citada e sublinhada, a que lhe poderá permitir ficar na presidência até 2036, há outras medidas de fundo ideológico que traduzem a consagração de uma linha de nacionalismo conservador, religioso e identitário. Isto não é novidade para quem tenha acompanhado a trajectória, as raízes ideológicas e as alianças de Putin. Este, depois de ganhar apoio popular com a melhoria da situação económica e restabelecer a autoridade e estabilidade no conflito com os radicais chechenos, foi buscar uma base de apoio ao patriotismo do povo russo e ao conservadorismo da Igreja Ortodoxa.
Mas, sentindo que, apesar dos horrores do bolchevismo e do estalinismo, subsistia também, entre os russos, algum sentimento de orgulho patriótico em relação à “Guerra Patriótica”, teve o cuidado de não rejeitar todo o período da URSS na sua concepção do patriotismo russo. Por outro lado, revolucionariamente tradicional, reintroduz “a fé em Deus, transmitida pelos nossos antepassados” e definindo-se contra o politicamente correcto impõe o casamento como “união entre um homem e uma mulher”; e que o “povo russo” é elemento determinante da constituição do Estado. Fica também uma nota de “unificação” ou estatização mais identitária.
Por isto não nos podemos admirar que os movimentos nacionalistas populares europeus – com o Rassemblement National de Marine le Pen e o Lega de Matteo Salvini – tenham grandes simpatias e afinidades com Putin.
O discurso político do líder russo traz claramente de volta, os valores de Deus, da Pátria e da Família, num catecismo que está bem longe do liberalismo político-cultural “do Ocidente” e ainda mais da sua versão do esquerdismo politicamente correcto.
Trump no Monte Rushmore
E foi do mesmo tom o discurso do 4 de Julho, de Donald Trump, que muitos conservadores consideraram o seu melhor discurso político: aproveitando a ocasião para exaltar os “patriotas” que a 4 de Julho de 1776 fundaram oficialmente a América, o Presidente dos Estados Unidos fez um elaborado contra-ataque e desmontagem da ideologia inspiradora dos “bandos agressivos“ que há algumas semanas vêm destruindo estátuas, saqueando lojas, criando zonas “livres” em cidades, retratando-os como iconoclastas, inimigos da cultura e do povo americanos.
Ao mesmo tempo veio sublinhar a natureza totalitária dessa cultura da Anti-América, que se exprime para além da destruição ou dessacralização de símbolos e monumentos da História americana, na imposição de uma nova linguagem, que à semelhança do Newspeak orwelliano, traz um Newspeak que promove certas palavras e expressões e proíbe outras tantas.
Por outro lado, e com grande aplauso da assistência, anunciou a detenção de alguns dos responsáveis pelas destruições e vandalizações dos monumentos a George Washington, Andrew Jackson, Abraham Lincoln e Ulysses Grant.
Passando à inspiração ideológica destes comportamentos antipatrióticos, Trump disse que resultava de “anos de doutrinação e preconceitos na educação, no jornalismo, em instituições culturais”, de uma formação antipatriótica que, sistematicamente, distorcia a história americana, de modo que os jovens, em vez de respeitar aqueles heróis e construtores da Pátria, passavam a vê-los como racistas, esclavagistas, imperialistas, figuras para odiar e não para admirar.
Traçou depois os perfis dos Presidentes imortalizados ali, no Mount Rushmore, de George Washington a Thomas Jefferson a Lincoln e Ted Roosevelt, que simbolizam a aventura da Nação Americana.
Mais adiante, sempre muito ovacionado pela multidão juntou num mesmo rol de representantes dos ideais de cultura americana, figuras de militares como George Patton, de cantores e músicos como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Elvis Presley, mas também inventores e pioneiros da técnica como os irmãos Wright, escritores e poetas como Mark Twain e Walt Whitman, actores como Bob Hope e Frank Sinatra. Brancos e negros, conservadores e liberais, republicanos e democratas, mas todos patriotas.
E terminou com um apelo à unidade da América e dos Americanos na data da sua independência e sob as esculturas gigantes dos Presidentes, da autoria de Gutzon Borglum, ali representados.
O discurso de Trump no Mount Rushmore, embora no quadro polémico de uma pré-campanha eleitoral e como resposta à vaga de esquerda iconoclasta dos “valores americanos”, acaba por sublinhar e defender os valores de Pátria, a Religião, o Patriotismo, a Família, a importância da História – da História correctamente contada, na formação dos cidadãos.
Putin atacou claramente o liberalismo ou progressismo no sentido europeu; Trump a correcção política e um “liberalismo” (à americana) que sob a forma do radicalismo da Nova Esquerda, ataca não só teórica ou doutrinariamente os valores americanos, mas materialmente destrói os seus símbolos.
E a Europa?
Na Europa, a UE continua a proclamar uma agenda oposta – a Constituição europeia rejeitou expressamente a inclusão do nome de Deus, a maioria das legislações consagrou os casamentos homossexuais, e o patriotismo e o nacionalismo são vistos como perigosos desvios da doutrina oficial da integração europeia, inimigos da democracia e da liberdade.
Mas o facto é que em quase todos os países da Europa existem hoje e afirmam-se partidos e movimentos políticos que vão no sentido, precisamente, de um reforço deste tipo de valores, embora permanecendo um laicismo mais forte e fora do conservadorismo religioso da América e Rússia. O que terá a ver com a descristianização da Europa Ocidental.
E, por outro lado, a Oriente, agora sob todos os focos pela crise aberta pela pandemia, mas também pela presença nas economias do resto do mundo, e pela linha agressiva de uma política recente, ergue-se a República Popular da China, a potência nova no status quo.