A sorte ou o azar da Geografia acabam por ditar diferentes histórias na História, umas boas, outras más, outras piores.

Falámos disso em Varsóvia, na semana passada, numa conferência sobre a “Nova Europa”. Há nações – como a Polónia e a Hungria, nações antigas, com mais de mil anos – que, situadas em zonas turbulentas de sucessivas hegemonias imperiais, acabam por viver em cativeiro grande parte da sua História. Há outras, como Portugal, que por só terem um vizinho e estarem na ponta do continente, são, nessa matéria, mais felizes.

Escravos da Geografia

A Polónia é o exemplo extremo de uma má geografia. Lembrávamo-lo em Varsóvia, precisamente na parte da Cidade Velha reerguida das ruínas a que foi reduzida, por ordem de Hitler, depois da insurreição no Verão de 1944 contra os ocupantes alemães; tudo sob a expectativa cúmplice das tropas soviéticas que, por imposição de Estaline, esperaram do outro lado do Vístula que a rebelião fosse aniquilada e a cidade destruída, para avançar e ocupar, a terra queimada.

Mas a Polónia tem uma longa História. Nas vésperas do Ano Mil, em 966, o rei dos polacos, Miecislau I (930-992) converteu-se ao cristianismo romano e à obediência ao Papa, também para escapar à incorporação e obediência ao Sacro Império Romano-Germânico. A evangelização dos eslavos fora obra de dois irmãos, os santos Cirilo e Metódio, nascidos em Tessalónica, no Império Bizantino, que missionaram na Crimeia e na Morávia. Na Europa da época, o poder religioso e o poder político eram chaves da mesma ordem, antes da luta entre o Império e o Papado que marcou o Ocidente medieval.

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Nestas grandes planícies da Europa Oriental, entre os pagãos e a par da dinastia Piast, a dos primeiros reis polacos, emergiam os Cavaleiros Teutónicos, os Hospitalários de Jerusalém em versão germânica (Orden des Hospitals zu Sankt Marien der Deutschen zu Jerusalem). que conquistaram a Prússia. Todos estes poderes e os respectivos povos sofreram, por volta de 1241, a devastação das invasões dos Mongóis. Nos séculos XIII e XIV, a Ordem Teutónica, o Grão-ducado da Lituânia, os reinos da Boémia, da Hungria e da Polónia repartiram o território, o poder e a influência. Internamente, nestes Estados, o poder partilhava-se entre o monarca e os senhores feudais, às vezes com o protagonismo de cidades independentes como Dantzig (hoje Gdansk, na Polónia), parte da Liga Hanseática.

Em 1386, um ano depois da consolidação da independência portuguesa em Aljubarrota, Ladislau II fundou a dinastia dos Jaguelões. Ladislau converteu-se ao Cristianismo e casou com Edwiges, rainha da Polónia, que tinha sido coroada em Cracóvia. A dinastia dos Jaguelões reinou na Polónia de 1386 a 1572; no mesmo período reinou também por temporadas na Lituânia, na Hungria e na Boémia. Foi nos reinados finais dos Jaguelões, com Segismundo I e Segismundo II, que se deu o tempo conhecido por “Idade do Ouro” da Polónia, quando a chamada comunidade polaco-lituana se expandiu e chegou a ter mais de um milhão de quilómetros quadrados, abrangendo território de sete países actuais e uma população de 11 milhões de habitantes. Eram também economicamente fortes, numa época em que o idioma polaco se tornou a língua franca da Europa Central e Oriental.

Em 1573, depois da morte sem descendência de Segismundo Augusto II, o último rei dos Jaguelões, uma assembleia de milhares de nobres polacos teve de escolher um novo rei da Polónia e grão-duque da Lituânia entre quatro candidatos – Henrique de Valois, Ernesto de Habsburgo, João III da Suécia e Ivan, o Terrível, da Rússia. Ganhou o Valois, mas o seu reinado foi muito curto pois, pela morte do seu irmão Carlos IX (o do massacre de Saint-Barthélemy), Henrique preferiu ser rei de França a ser rei da Polónia, e discretamente abandonou Cracóvia.

Entre cativeiros

A monarquia electiva da comunidade polaco-lituana, consagrando uma oligarquia feudal, acabou por levar, nas últimas décadas do século XVIII, à debilidade, ao confronto interno e às sucessivas partilhas do país entre a Prússia, a Rússia e a Áustria. E depois de uma efémera autonomia no tempo napoleónico, com o grão-ducado de Varsóvia, a Polónia ficou cativa até 1918. Com a derrota e fragmentação da Rússia, da Alemanha e da Áustria imperiais, o país teve uma ressuscitada independência, sob a égide do marechal Pilsudsky, mas logo em Setembro de 1939 foi outra vez invadido e partilhado entre Hitler e Estaline. E, a seguir à guerra, de acordo com as cedências de Roosevelt e Churchill à União Soviética, ficou na esfera de influência de Moscovo.

No pós-guerra, os comunistas fizeram o número do costume: um governo de Frente Popular, cheio de “companheiros de caminho” e marionetas. Stanislas Mikolajezyk, um dos membros desse governo, mas anticomunista e líder do Partido dos Agricultores, tentou organizar a resistência. Mas os comunistas alteraram fraudulentamente os resultados do Referendo de 1946 e das eleições de 1947, e Mikolajezyk teve de deixar o país.

A partir de 1948, os comunistas polacos, liderados por Władysław Gomułka, impuseram pelo terror a socialização acelerada da economia da Polónia, com a colectivização da agricultura e a concentração dos recursos na indústria pesada. O terror estalinista redobrou e o próprio Gomulka, acusado de “titismo”, chegou a ser preso, voltando depois ao poder no pós-estalinismo.

O cardeal Wyszynski foi também detido. Mas no pós-estalinismo o cardeal e Gomulka chegaram a um entendimento tácito e colaboraram até para evitar que a Polónia tivesse a mesma sorte que a Hungria depois da revolta de Budapeste de 1956.

Entre altos e baixos da repressão ou do degelo, o sucessor de Gomulka, Edward Gierek, procurou captar alguns capitais ocidentais para a Polónia. Mas o facto mais decisivo na história da Polónia moderna e de todo o Leste europeu foi a eleição do cardeal Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, como Papa João Paulo II, em 1978. Assim, quando no Verão de 1980 nos estaleiros de Gdansk um carismático operário electricista, Lech Walesa, mobilizou os trabalhadores para a luta sindical, criando com o Solidariedade um sindicato livre com milhões de filiados, o poder comunista reagiu; mas já não reagiu ao modo de Estaline, ou mesmo de Kruschev, na Hungria em 1956.

E o medo, o grande cimento das sociedades comunistas, não se compadeceu com a moderação. Com Reagan na Casa Branca e João Paulo II no Vaticano, os resistentes polacos encontraram apoio para resistir à repressão e ao terror.

A sua luta e exemplo encorajaram os húngaros e outros povos da Europa Central a resistir. E a partir daí, já nada podia parar os povos e as nações cativas do Leste.

Na Polónia, o cativeiro comunista, ao “congelar” a sociedade, impediu que ali se desse a deriva hiperindividualista e libertária que, no Ocidente, acabaria por conduzir aos delírios culturais fantasistas e decadentistas a que hoje assistimos. Na Polónia comunista, entre o medo da denúncia e a perseguição policial, a Religião e a Família foram determinantes como refúgio e porta para o mundo além-cativeiro. E durante todo esse tempo, a Europa, a Europa ocidental era para os polacos símbolo e modelo de Liberdade.

Depois de tanto tempo submetidos a poderes estrangeiros, reaccionários e progressistas, czaristas e comunistas, os polacos olham agora com apreensão e estranheza para a Europa, para a mesma Europa livre que tanto admiravam, vendo óbvios sinais totalitários na “benevolente” tutela ideológica e cultural que, pela chantagem económica, Bruxelas lhes quer impor.

As nações que foram cativas pressentem bem os caminhos de servidão.