O epíteto “populista” tem uma forte conotação pejorativa, em especial no contexto europeu. A expressão “populismo” invadiu o léxico quotidiano e é repetida ad nauseam na comunicação social e nos encontros políticos e académicos. Contrariamente ao que possa parecer, a popularidade do populismo é inversamente proporcional à sua fixidez concetual.

Ao classificarem-se todas as experiências políticas, ideológicas e societais como “populistas” esvazia-se de conteúdo diferenciador a génese da expressão “populismo”. Com efeito, o “populismo” está para os politólogos como a utilização descontextualizada do instituto do “abuso do direito” ou do princípio da “dignidade humana” está para os juristas. Eis como a banalização do “populismo” o transformou num conceito redondo, que tudo e nada diz.

Uma abordagem possível do “populismo” seria, tão-simplesmente, a ideia de aspiração democrática ou de participação do povo na condução dos destinos do seu Estado. Nesta perspetiva, o “populismo” nada teria de negativo, pelo contrário. Não é, porém, esta a roupagem que tem sido atribuída a movimentos, regimes ou tendências populistas ou neopopulistas. Apesar da feição camaleónica do “populismo”, que assume versões mais radicais ou mais suaves, é possível identificar alguns denominadores comuns, que passarei a analisar.

Em primeiro lugar, este fenómeno não resulta associado a uma determinada cor política ou a um específico perfil ideológico ou económico. Por tal razão, foram apelidados de “populistas” tanto Hitler, Estaline, Kim Jong-Un, Getúlio Vargas, Alberto Fujimori, Milosevic, Erdoğan, Viktor Orbán, como Perón, Berlusconi, Le Pen, Chávez e Maduro, Putin, Rodrigo Duterte, entre tantos outros líderes.

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Em segundo lugar, o populismo convive com discursos políticos demagógicos e com estilos retóricos de forte invocação popular, nos quais o “povo comum” surge como força coletiva de oposição às “elites corrompidas” ou aos poderes estabelecidos. De uma luta política (esquerda-centro-direita) transita-se para uma luta moral (o bem contra o mal). A forma predileta de diálogo com o povo será mediante discursos simples, diretos e sonantes, que magicamente descodificam os mais acutilantes problemas. Confortado com explicações singelas a questões complexas, o povo sossega as suas inquietações e permanece adormecido intelectualmente – uma espécie de “panem et circenses” (pão e circo) dos tempos modernos.

Em terceiro lugar, num cenário de populismo há um repúdio de intermediários, preferindo-se um contacto direto e imediato entre o “líder” e o “povo”. Esta lógica antissistema não rejeita apenas a governação feita pelo partido A, B ou C, mas, mais amplamente, a própria organização política do Estado. A soberania popular, que se manifesta também através de instituições representativas do povo, é substituída pela democracia direta ou o autogoverno do povo. Esta forma de diálogo “democrático” conseguiria purificar a política e desintoxicá-la de todos os interesses escondidos (Pierre-André Taguieff).

Não surpreendentemente, o próprio conceito de “povo” surge idealizado, numa feição mítica, aspiracional e quasi-transtemporal (o corpus mysticum a que se refere Jan-Werner Müller). Este etéreo “povo” vive em comunhão ideológica plena com o seu “líder” carismático, que consegue interpretar a vontade do “povo autêntico”, dentro ou fora do perímetro institucional democrático contemporâneo. Com a justificação de uma maior transparência, os instrumentos de diálogo entre o “líder” e o “povo” serão as eleições e o referendo, independentemente das condições reais em que estes atos plebiscitários ocorrem, amiúde em violação de regras de integridade eleitoral e mediante forte manipulação da opinião pública.

Ainda que alguns Estados escapem a formas severas de “populismo”, é pelo menos inegável que assistimos a um certo desencanto pela democracia-representativa como forma de legitimação do poder. A participação eleitoral não é a desejável e o eleitorado tende a questionar a probidade dos seus “políticos”. O ideário democrático apresenta-se quiçá longínquo, descafeinado e imperfeito, parecendo não acompanhar o devir desenfreado de um mundo em misteriosa metamorfose.

Na minha opinião, esta realidade revela uma patologia grave, que é precisamente a incapacidade hodierna de raciocinar diacronicamente. Em competição desleal com o ritmo sôfrego da nossa era digital, o processo decisório-democrático afigura-se como moroso e complexo. A título de exemplo, o procedimento legislativo passa por inúmeras etapas (fases de iniciativa, instrução, deliberação e controlo) até à entrada em vigor de uma lei. Como saber esperar em tempos de imediatez? Deveremos ceder a uma sedutora lógica de “atalhos” em detrimento da representação democrática?

Goste-se ou não, a ameaça de versões radicais de “populismo” é uma realidade política dos nossos dias. Com o intuito de relativizar e dar perspetiva a algumas destas preocupações, deixo uma célebre reflexão de Winston Churchill, proferida há 70 anos atrás: “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todos os outros já experimentados ao longo da história”.

A história da humanidade fez-se de avanços e retrocessos, mas também de momentos de clarividência e de coragem política. Será, por conseguinte, urgente aprender a lidar com a frustração da imperfeição democrática, sem perder de vista que as outras formas até agora encontradas para a substituir nada trouxeram senão desigualdade, falta de liberdade, ditadura da maioria, nihilismo consitucional, ausência de pluralismo, inexistência de controlos mútuos (checks and balances) entre os órgãos de soberania políticos, e violações de direitos e liberdades fundamentais.

Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa