A certa altura do debate do Orçamento, o ministro da Economia impacientou-se: “Desde 2015 o salário mínimo em Portugal aumentou um terço: 32%. A Alemanha já não aumenta o salário mínimo há anos!” A Alemanha apenas tem salário mínimo desde 2015. De então para cá, aumentou-o ligeiramente cinco vezes, para o montante actual de 1.585 €. Claro que a Alemanha é a Alemanha e Portugal, coitados de nós, é Portugal. E a Venezuela, que no mesmo período aumentou o salário mínimo uns 800%, para os 3 euros em vigor (compram um queijo e um litro de leite), é a Venezuela. Não é esse o ponto.
O ponto é o seguinte: no debate de quarta-feira, o PS e o governo, que habitualmente mentem imenso, aproveitaram para mentir com redobrado empenho. Um espectáculo, não necessariamente digno. Pintou-se, com rolo de trolha, o retrato de um país à beirinha do Paraíso. Para atingir o Paraíso bastava meramente corrigir alguns pormenores herdados da Idade das Trevas, leia-se o Tempo do Passos. Por acaso e talento, as correcções chegariam com o novo Orçamento, que ergueria de vez a nação a uma plenitude virtuosa. Por maldade e azar, o Orçamento acabou rejeitado.
O dr. Costa não queria outro desfecho. Lendas à parte, a criatura percebe que reduziu isto a cinzas. O caldo de compadrios e ideologia amanhado pela frente de esquerda pegou num país combalido pela bancarrota anterior (a de Sócrates, lembram-se?) e atirou-lhe uma bigorna à cabeça. É particularmente engraçado que PS e governo tentassem vender o Orçamento como o “mais à esquerda de sempre”, portanto o “melhor de sempre”. Conhecem aquela empresa de revestimentos que publicita com orgulho o reforço da percentagem de amianto? Não conhecem porque não existe. Inacreditavelmente, os socialistas existem.
Ao invés do que se pensava, o “bluff” orçamental não veio de qualquer dos partidos comunistas: veio do PS e do governo, que enquanto fingiam vender o Orçamento rezavam para que ninguém o comprasse. Perante a desgraceira que se instalou e a desgraceira maior que não tarda a instalar-se, a intenção do dr. Costa consistiu em despachar a culpa para os ingratos que, além de não agradecerem devidamente as prodigiosas conquistas anteriores, recusaram as conquistas futuras.
Apesar das dificuldades linguísticas, o homem tem uma ideia do buraco em que nos enfiou, agravado pelas brincadeiras nacionais e internacionais alusivas à Covid. Nos próximos meses, que não serão bonitos, o Orçamento enjeitado justificará tudo. Tudo o que corra mal será responsabilidade dos bandalhos que ignoraram o interesse nacional em prol de – nojo profundo – estratégias partidárias. Ou seja, a única especialidade do dr. Costa. Entretanto, o dr. Costa ou vai à maioria absoluta, para se libertar de dependências e torrar a “bazuca” em paz, ou vai para o cargo “estrangeiro” e de “prestígio” para que se julga habilitado. Ou não vai a lado nenhum e depois logo se vê. Não sendo um plano brilhante, demonstra confiança na, digamos, candura do seu eleitorado potencial. E na fidelidade dos “media” sustentados pelo Estado e engajados pela crendice.
A imprensa amiga não demorou. Na quinta-feira, a manchete do JN berrava, assustadíssima: “Chumbo do Orçamento trava ganhos de mil milhões para as famílias” (chiça, por um triz). No “Público”, o pavor e a manchete não cabiam na página: “Portugal forçado a ir a votos” (e assim minar a democracia). De brinde, o interior deste diário enumera as medidas progressistas e estupendas ameaçadas pelo “chumbo” (ó inclemência, ó martírio). Televisão não vejo, mas as “redes sociais” fervilhavam de alegados eleitores do BE e do PCP (principalmente do BE) que juravam conversão ao PS. Eis uma amostra do que está para vir.
Caso eu conseguisse ter pena de fanáticos, teria pena de ambos os partidos comunistas, o original e a seita. Se continuassem a aliança com o PS, continuariam a encolher por redundância. Ao desfazer a aliança, arriscam-se a ser desfeitos pela propaganda de quem possui meios quase ilimitados. Quando o dr. Costa “derrubou o muro”, a extrema-esquerda não passou para o lado de cá: o PS passou para o lado de lá por conveniência e convicção. E ocupou sem hesitações o espaço dos inimigos da democracia. Com uma excepção: a “Europa”, que PCP e BE desprezam e de que o PS necessita por razões, vamos lá ver, financeiras. Foi a “Europa”, e as respectivas imposições, que serviu de pretexto à ruptura. A ruptura, palpita-me, servirá melhor o PS do que os ex-companheiros de estrada.
Não precisávamos do debate do OE para descobrir a desmesurada ausência de escrúpulos do dr. Costa e dos seus acólitos. E se é compreensível celebrar durante cinco minutos a queda dessa gente, seria tonto ignorar que a queda é simulada, e que essa gente, dona de um apetite voraz, nunca abdicará do poder com civilidade. O passo atrás visa dar muitos passos à frente, cada um a esmagar-nos no caminho. Essa gente é boçal, falsa, inapta, prepotente, ignorante e desonesta? Sim, sim, sim, sim, sim. E sim. Infelizmente, sobra-lhes em ganância o que lhes falta no resto.
Também falta ao PS concorrência. Até aqui, não falei na “direita”. Para dizer o quê? Não imagino aquilo que, hoje, a “direita” é ou pretende ser. Há por aí uns suspiros e uns desabafos e umas intrigas. Não há, que se veja, o esboço de um “projecto” (desculpem). A oportunidade caiu-lhe no colo: ou a “direita” arranja rapidamente juízo, e um milagre, ou o abençoado fim da “geringonça” pode tornar-se o início de coisa igual ou pior. Eu sei que pior parece impossível, mas, à semelhança de quatro quintos das palavras, “impossível” não consta do dicionário do dr. Costa. Antes de festejar, convém à “direita” ganhar a guerra. E antes ainda convém entrar na guerra.