Numa semana, tivemos o debate de dois adolescentes, cada um com mais de 4 décadas (em cada perna). Um chama-se Biden e assume o estado envelhecido do seu corpo, mas não o estado envelhecido das suas condições plenas. Ele sabe que não está fresco para governar aquela que ainda hoje é vista como uma das maiores, senão a maior, potência mundial. Mas também não se acha podre, possivelmente considera-se naquele ponto no limite de consumo. Se fosse uma fruta, talvez ainda desse para fazer um batido, mas nunca para se apresentar sozinha na travessa da sobremesa. O outro adolescente chama-se Trump e não assume a velhice, porque, na realidade, é um fantoche de si mesmo, e toda a gente sabe que os bonecos não têm idade. Trump reencarna aquela máxima de que a idade é só um número, mais precisamente 18, o número de buracos dos torneios de golfe para os quais desafia os seus amigos séniores.

Noutra semana, o que é cómico passa a trágico e o adolescente Trump é alvo de uma tentativa de assassinato (não, não foi com uma pancada de um taco de golfe) e quase perde a vida. Mas Trump, mais do que parecer adolescente, acredita mesmo nisso, e todos sabem que os adolescentes têm pelo menos 7 vidas, como os gatos. Trump foi poupado nas vidas que gastou e é por isso que, do alto dos seus quase 80 anos, ainda tem vidas para gastar.

Sei que o que posso acrescentar para além do que já foi escrutinado até ao tutano é pouco, ou mesmo quase nada, por isso abstenho-me de grandes interpretações políticas e faço antes uma interpretação pseudofilosófica, porque de política já está o mundo cheio. A célebre expressão “a realidade ultrapassa a ficção” não podia encaixar melhor para descrever o que se tem passado nos EUA (e até no mundo?). São tantas as afirmações e as interrogações por todo o lado. Foi tudo falso? Foram os democratas que o tentaram matar? Ele já sabia de tudo? Ele é um herói! A violência não tem lugar nos EUA! O sangue era tinta? A tinta era sangue? E será que se torna tinta o sangue que corre nas veias de Trump se o repetirmos muitas vezes?

A realidade nunca ultrapassou melhor a ficção porque, na verdade, se calhar nunca vimos tanta ficção como nos dias de hoje. As redes sociais, as frases tipo post-it publicadas e partilhadas até à exaustão, os vídeos cómicos que Trump partilha com os amigos pelo mundo para enaltecer ainda mais a já visível senilidade de Biden. Editamos tudo, fotos, vídeos, palavras, gestos, pessoas, partes do corpo, partes do mundo. Editamos tanta coisa fora do tempo real que se calhar já nem existe tempo real. Se calhar Trump gritou de medo naquele momento em que se apercebeu da bala, mas o mundo está tão aperfeiçoado que apareceu logo: error! error! e alguém se apressou a editar a expressão de medo e a substituí-la pelo punho forte cerrado do Super-Homem.

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Estaremos a ficar pouco reais? Que realidade existe no punho erguido de Trump, digno de um filme de cowboys ou da máfia italiana, tal herói sem medo da morte. Trump comporta-se como se estivesse num filme, talvez ele saiba algo que nós não sabemos. Talvez se vivermos como se estivéssemos num filme seja mais viável a possibilidade de levar um tiro, ou vários, e sobreviver sem uma cicatriz que nem um James Bond. Trump grita “fight!”. Mas contra o quê e contra quem, exactamente? Contra os que lhe querem fazer mal? Contra as armas? Contra jovens de 20 anos perturbados que têm acesso a armas? Contra “o amigo do golfe”? Contra o medo da morte? Contra a própria realidade?

Quando vi Trump levantar o punho vezes sem conta, apercebi-me de que o mundo está tão rápido que nem há tempo para demonstrar que se teve medo da morte, aliás, nem há tempo para o sentir. Quem será Trump quando está fechado a quatro paredes, será que cede sobre a realidade de quase ter morrido, será que chora, será que fica sem ar, será que tem um ataque de pânico e procura conforto junto dos seus? Quem é esta pessoa por detrás do fantoche automático?

Quando vi Biden e todos os outros condenar o ataque a Trump, apercebi-me de uma ainda mais doce constatação, a de que a violência une as pessoas. A violência de um rapaz, que se calhar ainda nunca tinha sido violento na vida, uniu milhares de cidadãos americanos, tanto aqueles que continuam a gostar de um tiro de pistola bem dado nos miolos, como aqueles que defendem uma menor facilidade de acesso a armas. E se isto não é bonito? A violência une as pessoas, mesmo aquelas que até parecem gostar de violência. #loveviolence. Ups, espirrei e saiu uma hashtag. Está aberta a silly season.