No princípio, na introdução do sistema democrático, aquilo que se discutia eram as ideias.
A construção de uma sociedade livre, desenvolvida e justa, era um conceito partilhado por todos, que diferia essencialmente na definição daquilo que significava a liberdade, o desenvolvimento e a justiça – e também na estratégia para atingir esse objetivo.
A alternância no poder seria resultante do debate das diferentes visões da sociedade e dos resultados que fossem sendo obtidos e, tendencialmente ambas promoveriam essa alternância, de forma que o resultado das diferentes governações e da aplicação das ideias contrárias num sistema consequente, resultaria numa sociedade equilibrada entre essas diferentes visões e sempre focada na liberdade, no desenvolvimento e na justiça.
Este debate de ideias permitia manter o a elevação da discussão e permitia manter o respeito entre todos aqueles que se envolviam nesse debate e posterior governação.
Mas a ganância de manter o poder por mais tempo, destruindo a natural alternância desejada, levou a uma reformulação do debate que se focou muito menos nas ideias e muito mais nas qualidades e defeitos dos defensores dessas ideias.
É francamente mais fácil combater um adversário através da exposição dos seus “defeitos, sejam eles verdadeiros ou falsos, do que combatê-lo através da prova da discussão das suas ideias.
Ao mesmo tempo, é muito mais útil e válido para a sociedade discutir as ideias e a partir daí definir o seu caminho do que criticar os defeitos de quem está a ser avaliado, descuidando totalmente as ideias de quem ganha a discussão dos comportamentos.
É também curioso pensar que, quem aceita esta forma de política de ataque aos defeitos de cada um, não tenha a capacidade de ver que, apesar dos seus próprios defeitos, ele próprio é capaz de realizar aquilo que muitos apreciarão do seu trabalho.
A partir daqui tudo se alterou.
O projeto deixou de estar focado na obtenção de uma sociedade com as características que se ambicionavam, para passar a ser apenas um jogo para garantir uma continuidade no poder, em que a única coisa que é avaliada é a aceitação de cada medida pelo eleitorado de forma a conseguir garantir a próxima eleição.
Uma governação baseada na visão da aceitação popular de cada proposta governativa resulta sempre num empobrecimento da solução final. Leva a assumir medidas que se contradizem e que criam incompatibilidades de funcionamento, ou mesmo que se anulam e que tornam impossível a sua implementação.
Por outro lado, a utilização da personalização como arma do ataque político tornou essencial que os atores desta nova realidade buscassem uma relação forte entre todos eles, criando um sistema de imunidade que não permitisse a sua queda constante em resultado dos debates que se circundariam em torno dos defeitos pessoais que todos temos e que hoje, com a mediatização e a forma de comunicar nas redes sociais, permitem com facilidade destruir caracteres.
Substituiu-se, assim, o respeito pelo adversário das ideias pelo compromisso entre todos os que não querem correr o risco de serem destruídos.
Juntando esta forma de trato inter pares com a baixa absurda das causas da discussão política e dificilmente acabaríamos num cenário melhor daquele que temos hoje no Mundo ocidental.
Por um lado, as populações, que não se importaram de ir dando a sua opinião medida a medida em vez de avaliarem o resultado da governação por inteiro, estão agora a ficar frustradas com o péssimo resultado que daí adveio e que nos colocou num novo pântano no que respeita ao desenvolvimento da sociedade que esperávamos e que nos foi sendo prometida.
Por outro lado, o centrão político que foi sendo criado com aquela forma de fazer política, não pode nem consegue apresentar soluções alternativas pois tem medo de que, saindo daquilo que foi a sua zona de conforto que o manteve no poder até agora, possa vir a ser escorraçado da sua cómoda situação de sempre eleito.
Avançam agora com a bandeira da defesa da democracia contra os extremos populistas e esquecem que esses extremos foram entubados por si mesmos enquanto se tentaram manter na governação desde o momento em que abdicaram de cumprir a sua obrigação de defender aquilo em que acreditavam correndo o risco de perder o poder.
Pois agora só vejo dois caminhos.
Ou seguimos o caminho de ir dando campo de crescimento a estas novas propostas populistas que medram por todo o Mundo ocidental e que nos trarão um tempo de grande dureza e que terminará numa revolução ou guerra para restabelecer um novo sistema democrático, ou assumimos de novo os valores em que acreditamos da construção de uma sociedade livre, desenvolvida e justa, com a coragem de enfrentar o risco de perder e sem medo de ficar de fora.
Estou convencido de que só assim voltaremos a ter um governo que recupere a democracia e que não nos deixe perder de novo quarenta anos para voltar a acreditar.