Na passada sexta feira centenas de milhares de trabalhadores da área metropolitana de Lisboa que por qualquer motivo necessitassem de regressar a casa após o trabalho não o puderam fazer de forma minimamente satisfatória. Trabalhadores que por não terem viatura própria, por razões ambientais ou outras usam o transporte ferroviário. Tal deveu-se não apenas a uma greve convocada pelos sindicatos dos comboios suburbanos da CP, direito constitucionalmente garantido e que naturalmente pode causar transtorno aos cidadãos, mas sobretudo a uma decisão do tribunal arbitral que considerou que não havia necessidade de decretar serviços mínimos de transporte ferroviário. O Tribunal ignorou outros direitos essenciais dos cidadãos. A CP também não esteve bem na informação dada aos seus utentes. Importa perceber porquê e que soluções poderemos ter para evitar que isto suceda no futuro.
Não sendo jurista, não me parece que os contornos jurídicos da situação sejam muito complexos, pois envolvem sobretudo a Constituição da República Portuguesa (CRP), o Código de Trabalho (CT) e o Decreto-Lei da Arbitragem (D-LA). A CRP consagra o direito à greve, bem como o direito ao trabalho, o direito à deslocação, o direito ao acesso aos cuidados de saúde. O direito à greve não é ilimitado, precisamente pela presença de outros direitos e logo na CRP é estabelecido que a lei estabelece os serviços mínimos “indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades impreteríveis”. No direito à saúde é referido o direito de acesso independentemente da condição económica. O Código de Trabalho (artº538) refere os princípios que devem ser considerados na definição dos serviços mínimos – necessidade, adequação e proporcionalidade – e remete a sua definição no caso de empresas do setor empresarial do Estado para a lei de arbitragem obrigatória. Onde os cidadãos (utentes) começam a ser ignorados é no CT, que só refere a necessidade de afixação da decisão do Tribunal em locais destinados à informação dos trabalhadores. Parece que a inexistência de serviços mínimos não é também sobremaneira relevante para os utentes de serviços públicos!
Finalmente, temos o Decreto-Lei sobre arbitragem obrigatória e serviços mínimos, que estabelece as regras do tribunal arbitral que se tudo funcionar bem tem um árbitro designado por cada uma das partes (sindicatos e empresa, neste caso CP) e estes escolhem o árbitro Presidente, de uma lista previamente existente no Conselho Económico e Social. Este modelo pode ser muito adequado para arbitragem quando as partes essenciais do litígio sobre serviços mínimos são essencialmente os trabalhadores e entidades patronais no privado. Porém, quando se trata de serviços públicos fornecidos por entidades públicas e que tocam nos direitos essenciais dos cidadãos é claro que não. Uma parte que não deveria ser ignorada são os cidadãos/utentes desse serviço público. Talvez algum jurista me consiga explicar como é que esta lei de arbitragem se compagina com o artº 60 da nossa Constituição que refere que as associações de consumidores devem ser ouvidas sobre as questões que dizem respeito à defesa dos consumidores.
Na realidade as partes essenciais neste litígio – haver ou não serviços mínimos – são os cidadãos e utentes do serviços ferroviários de um lado e os trabalhadores do outro. A CP, que curiosamente neste OE 2022 viu-lhe ser aprovada uma dotação de capital de 1815 milhões de euros, na realidade pouco ou nada perde com a inexistência de serviços mínimos. A esmagadora maioria dos utentes tem passes pré-comprados. Perderá alguma receita, mas também poupa nos custos (material circulante parado). Não admira que a decisão de não haver serviços mínimos tenha sido aprovada por unanimidade. Não estava ninguém a defender firmemente os (outros) direitos dos cidadãos, para além do direito à greve. O Estado, accionista da CP, está indiretamente na arbitragem, mas não como defensor do interesse público. Só isso explica que o árbitro, representante da CP que argumentou que há pessoas, sobretudo mais carenciadas, sem alternativa ao transporte público, tenha votado favoravelmente a ausência de serviços mínimos.
Não o vou maçar, estimado leitor, com a análise detalhada do Acordão, que merece ser lido e bem discutido nas faculdades de direito. Apenas noto algumas perplexidades. Os árbitros tomaram como bom e útil um argumento irrelevante apresentado pelos sindicatos: que para as horas da greve não estava marcada mais nenhuma greve dos transportes públicos. Factualmente correto, é irrelevante para o debate sobre serviços mínimos neste caso dos transportes públicos, que é considerado, e bem, pelo Tribunal como um dos casos em que há necessidade de serviços mínimos (ponto 9). Irrelevante, pois não há pura e simplesmente, nenhuma alternativa de outros transportes públicos em várias linhas suburbanas (e.g. Cais do Sodré-Cascais) ao transporte ferroviário. Sobre a proposta da CP de circularem 30% das composições, o tribunal considerou que sendo lícita, ela carece de justificação. Sim, a CP deveria, e tão fácil seria, sabendo os volumes de tráfego, justificar essa percentagem. Porém, o Tribunal ao deliberar que a circulação pode chegar a 0% (que é o que significa não haver serviços mínimos nem circulação) está claramente a promover uma solução claramente inadequada e não proporcional. Finalmente, o argumento do tribunal arbitral é o do precedente e da segurança jurídica. Quer o Código do Trabalho quer o D.-L. da Arbitragem referem-se ao relevo de decisões semelhantes no passado. Houve uma decisão recente sobre um caso – greve na área metropolitana do Porto – que os árbitros consideraram semelhante porque o setor e o período (horas) de greve eram semelhantes. Também aqui os senhores árbitros não estiveram bem, pois uma greve substancialmente idêntica, não deve ser avaliada apenas pelo horário e setor, mas pelo contexto, nomeadamente a existência ou inexistência de transportes públicos alternativos pois é isso que determina se não estão ou estão a ser violados direitos dos cidadãos.
Há várias coisas que têm de ser mudadas se se quer ter respeito pelos direitos dos cidadãos e compaginar com o direito à greve. Mudar a legislação no sentido de, no mínimo, tornar obrigatória a consulta às associações de consumidores, sempre que estão em causa serviços públicos em que os serviços mínimos são essenciais para a defesa dos direitos enquanto cidadãos e consumidores. A legislação deveria expressamente prever algumas situações, como esta da mobilidade em áreas metropolitanas onde não existem alternativas de transportes públicos, em que deve ser imperativo a existência de serviços mínimos. Porém, as empresas públicas, neste caso a CP, devem ter uma atitude muito mais ativa para melhor informarem os seus utentes e defenderem os seus interesses.
Nesta greve ao serviço ferroviário suburbano em Lisboa o tribunal arbitral deu razão aos sindicatos ao concordar com a inexistência de serviços mínimos de circulação de comboios, pondo em causa direitos essenciais dos cidadãos consagrados constitucionalmente. Fez mal.