Passageiros a lutar por um lugar no comboio, carruagens mais sobrelotadas, do que o usual,  pessoas a sentirem-se mal, acionamento do sinal de alarme,  ausência de comunicação com os passageiros estando o caos instalado, passageiros a forçarem a abertura de portas e saltarem para a linha de comboio por onde caminharam para alcançar a estação mais próxima. O que se passou esta semana na linha de Sintra, mais parece a realidade países em desenvolvimento com graves carências de infraestruturas. As imagens em vídeo e as fotos deveriam ser vistas por todos, em particular, pelos governantes que detêm  a tutela da CP, pela administração da CP, os sindicatos, e os juízes dos tribunais arbitrais que têm decidido sobre serviços mínimos.

Já tive ocasião de abordar em artigo aqui o que penso sobre os direitos constitucionalmente garantidos quer à greve, quer ao trabalho,  à deslocação, à saúde ou à educação. Em particular discordei da não definição de serviços mínimos, mesmo numa greve limitada, mas que coincidia com o regresso do trabalho das pessoas. No caso dos transportes públicos ferroviários, sem alternativas de transportes públicos, existe uma necessidade imperiosa de limitar o direito à greve para atender aos outros direitos. Em teoria, estou de acordo com a interpretação dada às tensões entre estes direitos referida por alguns juízes-presidentes dos tribunais  arbitrais (e.g. Pedro Martinez). Já discordo absolutamente de outros (e.g. Vítor Norberto Ferreira)  que decidiram, relativamente a outra greve, não definir serviços mínimos pois consideram que a restrição do direito à greve só se justifica se houver um “dano irreparável ao núcleo essencial de tais direitos”, leia-se os restantes direitos.

O impacto destas greves ferroviárias, não incide sobre a CP, que tem grande parte da receita assegurada e que reduz a despesa (em pessoal e material circulante), nem sobre os trabalhadores que têm emprego assegurado. Incide sobretudo sobre as dezenas ou centenas de milhares de pessoas que, já com o passe comprado, vivem nos subúrbios das cidades de Lisboa e Porto e têm de se deslocar a estas cidades para trabalhar sem outra alternativa de transporte. São aqueles que acordam antes de todos os outros e que têm, por vezes dois empregos para conseguir ter um salário decente. São os seguranças, as empregadas de limpeza, os assistentes operacionais, os “trolhas” da construção civil e muitos outros, frequentemente precários, ou até ilegais, com o salário mínimo ou perto desse valor irrisório. Uns serão nacionais, outros migrantes vindos de outras paragens. São eles os mais afetados e que poderão mesmo perder o trabalho. Como é possível estabelecer serviços mínimos de 25% em hora de ponta num percurso em que as carruagens já vêm normalmente sobrelotadas, mesmo não havendo greve, como na linha de Sintra?

Temos então uma lei, paradoxal, que considera que quem se deve sentar na mesa do tribunal arbitral são apenas as partes pouco ou nada afetadas pela greve (sindicatos e empresa), e quem por elas é afetado – os utentes dos serviços públicos – está ausente da decisão. Quer o governo (Decreto-lei) quer a Assembleia da República podiam melhorar este enquadramento legislativo.

O problema não está apenas na lei, nem nalgumas interpretações e decisões dos tribunais arbitrais sobre os serviços mínimos, está também na CP. Neste caso de Sintra, falharam desde logo , o acautelar das consequências para os utentes. A CP é uma empresa pública pelo que deveria ter sempre presente a obrigação de cumprir o serviço público. Sabe melhor que ninguém os fluxos de passageiros de cada linha suburbana, pelo que sabe as necessidades reais das pessoas, e se têm ou não alternativa de transporte. Essa informação devia ser pública e levada para as reuniões dos tribunais arbitrais. No passado, por ocasião de greves, havia alternativas de autocarros (pagos pela CP) para assegurar o direito à mobilidade das pessoas de suas casas para o trabalho. Se a CP sabia (e sabia pois apresentou a proposta de 30% de serviços mínimos) que a oferta era muito inferior à procura deveria ter tomado medidas para colmatar essa insuficiência. A ausência de comunicação com os passageiros durante a paragem do comboio na linha de Sintra é também algo de inexplicável e de, no mínimo, falta de respeito pelos seus direitos mais essenciais.

Finalmente os inúmeros sindicatos do setor são uma realidade nova. As reivindicações da plataforma sindical acabam sendo muito mais exigentes, do que as reivindicações de cada sindicato, pois são o mínimo denominador comum. A CP é uma empresa que no final de 2021 tinha um passivo de 2,3 mil milhões de euros e resultados operacionais negativos, apesar de ligeiramente melhores que 2020. Para reduzir esse passivo o Estado terá injetado, de acordo com o Orçamento de Estado, 1,8 mil milhões para reduzir os encargos financeiros da empresa. Mas como o Estado tem de se financiar para fazer essa injeção de capital, basicamente transferiu-se dívida da CP para o Estado. Aumentos salariais numa empresa que é deficitária e que tem este passivo só podem ser financiados ou por ganhos de eficiência e de produtividade, desejáveis, mas em que não acredito, ou por mais dívida pública que será paga por impostos futuros.

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