No dia 20 de fevereiro, o Parlamento Português voltará a discutir, e a votar na generalidade, os projetos de lei de quatro partidos políticos para, em determinadas condições, legalizar a eutanásia.

A discussão pode e deve ser realizada em diferentes planos desde logo jurídico, médico, ético, moral e até ideológico.

Mas não pode ser isolada do contexto do nosso país; o contexto sobre o qual se pretende intervir através destas propostas concretas para, supõe-se, resolver um “problema” – sem criar outros porventura mais complexos.

Como se caracteriza o nosso contexto?

1 Os portugueses estão mais velhos e vivem mais anos, mas com mais doenças nos últimos anos de vida.

De acordo com os últimos dados do INE, entre 2013 e 2018, tanto a proporção de jovens (com menos de 15 anos de idade) como de pessoas em idade ativa (15 a 64 anos) diminuiu em relação ao total de população. O segmento de pessoas com 65 ou mais anos foi o único a aumentar.

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Em consequência, o índice de envelhecimento passou de 136,0 para 159,4 pessoas idosas por cada 100 jovens – destacando-se o Alentejo como a região mais envelhecida, com um valor de 203,1.

O INE estima que o índice de dependência de idosos, que mede o peso dos idosos na população em idade ativa, venha a duplicar entre 2018 e 2080, passando de 33,9 para 67,8 idosos por 100 pessoas ativas.

Por outro lado, a esperança de vida à nascença tem vindo a aumentar, situando-se em 77,78 anos para os homens e em 83,43 anos para as mulheres, em 2018. Um milhão de portugueses tem mais de 75 anos.

O “Retrato da Saúde dos Portugueses, 2018”,  explica que 41% do total de anos de vida saudável perdidos por morte prematura poderia ter sido evitado se fossem eliminados os principais fatores de risco modificáveis. E no que concerne ao indicador “número de anos de vida saudável vividos depois dos 65 anos”, o nosso país apresenta maus resultados. Os portugueses vivem mais, mas com mais comorbilidades durante os seus últimos anos de vida: diabetes, doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, obesidade e doenças oncológicas.

2 Os portugueses estão mais velhos e vivem mais anos, mas os idosos vivem com maior risco de pobreza.

A taxa de risco de pobreza atual corresponde à proporção de habitantes com rendimentos líquidos inferiores a 5.610 euros anuais, o equivalente a 468 euros por mês.

Segundo dados do INE,  a percentagem de pessoas em risco de pobreza baixou para 17,3% em 2017.  Mas há subgrupos para os quais o horizonte continua pouco otimista, nomeadamente os desempregados, os reformados e os idosos – para estes últimos o risco de pobreza está acima da média e a aumentar.

3 Os portugueses estão mais velhos e vivem mais anos, mas é cada vez menor a sua autonomia e cada vez maior a sua solidão.

Na operação “Censos Sénior 2019“, a GNR sinalizou 41.868 idosos a viver sozinhos, isolados ou em situação de vulnerabilidade devido à sua condição física ou psicológica, estando em causa a sua segurança. O maior número de idosos identificados a viver sozinhos ou isolados foi registado no distrito de Vila Real (4.736), seguido da Guarda (4.183), Faro (3.272), Viseu (3.201), Portalegre (3.147) e Bragança (3.142).

Considerando a realidade hospitalar, o “Barómetro de Internamentos Sociais, 2019”, da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, revela que 4,7% do total de camas disponível estava ocupado com internamentos sociais, com uma média de internamento inapropriado de 98,4 dias – predominantemente justificados pela falta de resposta na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, ou pela falta de meios ou disponibilidade das famílias cuidadoras.

Destes casos sociais, 36% dizem respeito a internamentos de utentes entre os 65 e os 80 anos e 44% a utentes com mais de 80 anos.

4 Os portugueses, velhos e novos, não têm acesso a uma rede cuidados paliativos universal, multidisciplinar, especializada e dedicada.

De acordo com “Relatório de Outono de 2019”, do Observatório Português de Cuidados Paliativos, em 2018, cerca de 102 mil doentes adultos e cerca de 8 mil em idade pediátrica, necessitaram de cuidados paliativos. Mas apenas 25% dos adultos e 0,01% das crianças e jovens tiveram efetivo acesso.

As equipas responsáveis nos serviços de cuidados paliativos estão 75% abaixo do recomendável.

Existe o equivalente a 66 médicos quando deveriam estar em funções 496; 243 enfermeiros quando deveriam existir 2.384; 17 psicólogos quando a necessidade é de 195 e 22 assistentes sociais quando deveriam ser 195.

De 2017 para 2018 diminuiu o tempo de alocação semanal médico e de enfermagem. A mediana dos tempos de dedicação semanal a cada doente é de 44,5 minutos na área da medicina; 82,5 minutos na da enfermagem; 8,8 minutos na da psicologia e 10 minutos na área de serviço social.

A cobertura das necessidades sinalizadas (considerando não só as infraestruturas físicas, mas também os profissionais de saúde disponíveis) é de apenas 16% nas Unidades de Cuidados Paliativos; de 19% nas Equipas Intra-Hospitalares de Suporte em Cuidados Paliativos; e de 7% nas Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos.

A rede nacional existente presta sobretudo cuidados paliativos com nível de diferenciação generalista, ao invés de serviços especializados. A cobertura universal de recursos de cuidados paliativos no nosso país está longe de estar alcançada, revelando profundas assimetrias quer a nível geográfico quer a nível de tipologias de cuidado.

Este é um retrato sumário de Portugal em fevereiro de 2020. Um retrato que mostra que estamos muito aquém do que seria desejável e possível no nosso grau de desenvolvimento civilizacional.

Aqui chegados, a pergunta relevante é esta: de que forma é que as propostas do PS, BE, PAN, e Verdes, que pretendem legalizar a eutanásia, têm em conta este contexto? Como atuarão sobre ele e em que sentido verdadeiramente o influenciam?

PS, BE, PAN, Verdes são partidos que, na sua matriz ideológica, não consideram a pessoa antes do Estado, mas que defendem o benefício, e por isso a prevalência, de uma organização coletiva sobre a liberdade de cada um.

É paradoxal que sejam estes partidos, de natureza “dirigista”, esclarecida e esclarecedora sobre quais devem ser as melhores escolhas para cada um, a propor a liberdade como desígnio na determinação das circunstâncias da morte. Só o consigo compreender como uma admissão da incapacidade de realizar o modelo social que defendem. Ou como uma demissão das escolhas – até orçamentais – que este exige fazer.

Na estrutura ideológica destes partidos, a legalização da eutanásia não será determinada por advogarem a liberdade de escolha.

Será o Estado a permitir uma via alternativa à incapacidade de cumprir o contrato social com os cidadãos de garantia das condições para uma vida digna até à morte natural, para todos.

No momento final, será o Estado a ter uma presença determinante, numa sucessão de consultas com médicos especialistas, médicos psiquiatras, pareceres de juristas, atestados e comissões de avaliação. Recursos médicos que faltam na altura de cuidar, mas que aparentemente sobrarão quando o momento for o de por fim à vida.

Claro que compreendo que as propostas destes partidos procurem estabelecer cautelas e limites, dando uma aparência de proteção que naturalmente se justifica, porque acredito que todos os proponentes têm consciência do risco de legislar sobre a morte e querem minimizar os possíveis erros.

Mas é paradoxal que a liberdade com que justificam a eutanásia venha ser deliberada por outros e que a outros seja entregue a sua execução.

Toda esta construção é movediça. Muito movediça.

A resposta que encontro para pergunta que acima formulei é que se estes projetos de lei forem aprovados, o contexto em nada se alterará: mais velhos, mais doentes, mais sós, mal cuidados. E a influência que podem vir a ter sobre o nosso futuro coletivo é a de, por omissão, empurrar as pessoas doentes, os idosos e as suas famílias, para vivências evitáveis, escolhas afinal desumanas sob uma capa de humanização.

Por fim, quero deixar claro que rejeito dicotomias de “bons” e “maus” nesta discussão. Que esse simplismo é também ele desumanizador. Por isso reafirmo o que aqui escrevi, em maio de 2018, quando, pela primeira vez, na posição de legisladora, fui chamada a votar:

Pondero o profundo respeito pelo sofrimento vivido, real e insuportável, e que muitos poderemos vir a experimentar como resultado da nossa condição humana; assumo a ausência de explicação para o sentido de muitas situações prolongadas de antecâmara da morte; revolto-me pelo atraso e insisto na universalização dos cuidados paliativos como condição de um fim de vida digno. Compreendo a complexidade da questão, rejeito simplificações e todos os “julgamentos”, mantenho dúvidas, sei da irreversibilidade que a legalização da Eutanásia significa.”

E agora, como então, com o meu discernimento próprio, para além da posição doutrinária do CDS, votarei contra a Eutanásia.