O Mundo está mais competitivo e mais conflituoso. Isso é tragicamente evidente na Ucrânia, mas seria uma ilusão pensar que Portugal ficará imune ao que se passa num Mundo mais perigoso para se dedicar apenas a casas, escolas e hospitais. Estamos para já a viver um período de transição de poder que historicamente resultou sempre em: mais tensões, mais conflitos, mais guerras, em suma mais perigos para pequenas potências como Portugal. Também é verdade que a par de mais riscos podem surgir oportunidades para explorar rivalidades e obter concessões de diferentes potências. É esse o jogo que São Tomé e Príncipe decidiu jogar. Fê-lo nos últimos anos com Taiwan e a China. Fê-lo agora com a Rússia. Dizer que isso significa um falhanço de Portugal ou da CPLP é não perceber o Mundo em que estamos, o nosso real peso ou a natureza da CPLP.

O que quis Portugal com a CPLP? 

A CPLP, criada em 1996, não é um novo nome para o império português. O final da Primeira Guerra Fria, em 1991, facilitou esta formalização da comunidade de cooperação lusófona. Uma Segunda Guerra Fria será um teste à sua resiliência e utilidade. Felizmente a CPLP nunca foi uma aliança militar, nem pretendeu ser um bloco exclusivo. É uma organização intergovernamental voluntária de países plenamente soberanos espalhados pelos cinco continentes. Países que, fazendo parte de diferentes regiões, naturalmente aderiram a diferentes organizações regionais económicas e de segurança. É umas das suas mais valias.

A CPLP foi o culminar do esforço de sucessivos governos de direita e esquerda do Portugal, pós-25 de abril de 1974, para normalizar e intensificar a cooperação com as antigas colónias. Isso foi feito frequentemente ignorando os diferentes alinhamentos dos países lusófonos no quadro de uma Guerra Fria Global que tinha voltado a intensificar, a partir de 1975, nomeadamente em África. O Presidente Ramalho Eanes que muito se empenhou nesse processo – por exemplo, com a cimeira de Bissau de julho de 1978 – justificava essa opção ao embaixador britânico lembrando que, nessa época e no continente africano, não havia propriamente grande escolha de democracias multipartidárias alinhadas com o Ocidente. Estaremos a regressar a uma situação semelhante? Na altura, Portugal e as antigas colónias africanas, todas elas com regimes marxistas, puseram de lado contenciosos históricos e diferentes alinhamentos na Guerra Fria, para melhor virar a página em nome de uma cooperação de interesse mútuo, inclusive no campo da defesa.

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Portugal e São Tomé

Afirmar que Portugal falhou em São Tomé por que não consegue impedir que este país faça acordos com grandes potências como a China ou a Rússia é não ter a noção desta realidade internacional ou da nossa capacidade de influência. Se algum país poderia ter essa ambição seriam os EUA. O Presidente Joe Biden tem procurado recuperar algum do terreno perdido em África depois de enormes oscilações no grau de interesse dos EUA no continente, atingindo um ponto especialmente baixo com Donald Trump. Mas o responsável máximo da diplomacia norte-americana, Anthony Blinken, tem deixado claro que os EUA não pretendem exigir aos países africanos acordos exclusivos. O Brasil, o Estado da CPLP de maiores dimensões e peso até esboçou a criação de uma zona de influência exclusiva no Atlântico Sul. Desde 1986 que ocasionalmente tem apostado na chamada ZOPACAS, uma zona de paz e segurança no Atlântico Sul. Isso justificaria, na leitura do presidente Lula que os países ribeirinhos limitassem a cooperação militar com grandes potências exteriores à região. Mas isso nunca aconteceu. Os países africanos há décadas que deixam claro, a quem os quiser ouvir, que não fazem um balanço positivo dos blocos da Guerra Fria e preferem maximizar oportunidades de investimento, comércio e cooperação com diferentes parceiros. Não faria qualquer sentido que Portugal tivesse como objetivo um exclusivo que nem os EUA, nem o Brasil conseguiram alcançar.

Soberanias

O governo são-tomense diz com razão que qualquer país soberano tem o direito de cooperar e se aliar com quem lhe convém. Não menos evidente é que a cooperação militar não é igual às demais. E que certas opções de cooperação e aliança podem ter consequências negativas nas relações com outros Estados. Ser amigo de todos soa bem, mas, por vezes, não é muito realista, sobretudo em período de conflito. Curiosamente a propósito deste acordo muitos putinistas descobriram que qualquer país pode escolher livremente cooperar ou aliar-se militarmente com quem quiser, desde que seja com a Rússia e não com os EUA ou a NATO.

Claro que a mesma lógica se aplica a Portugal. O nosso país tem tanto direito quanto São Tomé de escolher com quem quer cooperar mais ou menos, em que áreas, e em função dos seus interesses e valores. É legítimo e importante perguntar se Portugal deve cooperar militarmente com os países lusófonos, façam que alianças fizerem, e seja que regime e política interna e externa tenham? Devemos ajudar a afiar espadas usadas para dar golpes de Estado? Não me parece, embora nas últimas décadas muitas vezes pareceu haver um alinhamento automático com os demais países lusófonos. Claro que um corte total ao primeiro problema também não faz sentido. Mas é legítimo Portugal sinalizar em público e privado que esta aproximação a um país como a Rússia que ameaça a nossa segurança na Europa e viola de forma flagrante e reiterada o direito internacional é preocupante. É legítimo ponderar o conteúdo e as implicações do acordo e de uma maior presença militar da Rússia em São Tomé. É mesmo indispensável fazê-lo em relação à segurança operacional da presença militar portuguesa no país do Golfo da Guiné. Se a aproximação à Rússia vier a significar golpismo, violação de direitos fundamentais, hostilidade aos interesses e valores europeus isso deverá ter consequências na cooperação portuguesa, a começar pela militar, mesmo que não tenha de levar a um corte total. Fá-lo-ia com ponderação e discrição. Exigir publicamente exclusivos parece contraproducente. Exploraria alternativas inclusive de cooperação delegada da UE, ou trilateral, por exemplo, com os EUA. Até porque a Rússia não é propriamente conhecida pela fiabilidade no cumprimento dos compromissos assumidos. Moscovo prometeu a paz e o respeito pelas fronteiras de Ucrânia em troca de receber as respetivas armas nucleares, e sabemos o que realmente aconteceu. São Tomé faria bem em o ter em conta ao lidar, legitimamente, com a Rússia de Putin.